Descemos a
escada, decididos. O horário ainda não era aquele, mas roubamos algumas horas
de travesseiro e cobertor para cumprirmos o que havia tanto tempo planejáramos:
descer a escada, decididos.
A cada degrau, o tapete ao pé do
balaústre se ampliava sob nosso reduzido
foco de visão, até que a peça não mais cabia em nossos olhos,
restringindo nosso mundo às formas simétricas de um caleidoscópio.
E, assim, o plano tão minuciosamente estudado na noite
anterior pelo Sr. A. Almeida derrocou-se ante mais um tombo que todos levamos.
Ferido pela única parte do corpo até então intacta, o nariz, A Almeida nos
lembrou da obrigação: seguirmos imediatamente ao trabalho tal qual o tapete nos
deixara, já que o relógio apontava a urgência da partida. Retiramo-nos todos
rumo ao ganha-pão-de-cada-dia, menos A. Almeida, preocupado em disfarçar o
disforme pedaço de carne vermelha e intumescida que se tornara o nariz.
À medida que o rosto se cobria de pó de arroz, A. Almeida
deformava ainda mais a face pelos xingamentos que todos conseguimos ouvir já do
outro lado da rua. Praguejou o nariz deformado, amaldiçoou o tombo, até,
finalmente, alcançar o ápice do nosso mau humor: o tapete. Sim o tapete,
responsável por mais um dia de quedas. O tapete violentava dia a dia, aveludada
e lentamente, nossa vontade. Todas as manhãs, partes de nosso corpo eram
arrombadas pelos mudos losangos do carpete. O tapete, agente dos males, o seu
pior.
Almeida sabia que algo urgia. Talvez uma medida extrema.
Aquele não era o dia de ganhar-o-pão-nosso-de-cada-dia. As horas se guardaram
para outras urgências. A cada segundo um pouco de nós resvalava. Algo drástico
necessitava ser feito. Retornamos todos à casa. Álcool inflamável e um fósforo
eram o suficiente para devolver a alegria, e, pela lareira, observamos,
vitoriosos, a chama restituir cada pedaço da família A. Almeida.
Por fim, o tapete era cinzas. Uma felicidade intensa
tomou nosso corpo, a nos derreter em lágrimas. Do gosto salgado que nos descia à boca,
nos estranhamos pelo sentimento que nos vestia. Assemelhava-se mais à tristeza,
a uma dor vazia. Por que estávamos, lá, nós tristes, por Deus? Conseguimos,
pois, que não? Deveríamos era rir alto. Bem alto. Dobrar a barriga de tanto
rir. Mas, qual o quê! Chorávamos todos. Sem dor pra sentir. Chorávamos baixo.
Abafávamos nosso constrangimento.
Sem mais do
que, Almeida procurou em alguma tapeçaria aberta, por algum tapete à mostra,
igual ao outro em peso e medida. De volta ao lar, Almeida estendeu o tapete na
posição exata. Voltamos todos decididos ao ponto inicial da manhã, felizes e
agradecidos por ainda termos um tapete onde tropeçar.
IN: Mind the Gap. São Paulo: Editora Patuá, 2011. (mais informações sobre, no blog: mind the gap between the train and the platform)
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