"Querida, você tem um coração na garganta"
Minha avó

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O TAPETE


Descemos a escada, decididos. O horário ainda não era aquele, mas roubamos algumas horas de travesseiro e cobertor para cumprirmos o que havia tanto tempo planejáramos: descer a escada, decididos.

            A cada degrau, o tapete ao pé do balaústre se ampliava sob nosso reduzido  foco de visão, até que a peça não mais cabia em nossos olhos, restringindo nosso mundo às formas simétricas de um caleidoscópio.

            E, assim, o plano tão minuciosamente estudado na noite anterior pelo Sr. A. Almeida derrocou-se ante mais um tombo que todos levamos. Ferido pela única parte do corpo até então intacta, o nariz, A Almeida nos lembrou da obrigação: seguirmos imediatamente ao trabalho tal qual o tapete nos deixara, já que o relógio apontava a urgência da partida. Retiramo-nos todos rumo ao ganha-pão-de-cada-dia, menos A. Almeida, preocupado em disfarçar o disforme pedaço de carne vermelha e intumescida que se tornara o nariz.      
            À medida que o rosto se cobria de pó de arroz, A. Almeida deformava ainda mais a face pelos xingamentos que todos conseguimos ouvir já do outro lado da rua. Praguejou o nariz deformado, amaldiçoou o tombo, até, finalmente, alcançar o ápice do nosso mau humor: o tapete. Sim o tapete, responsável por mais um dia de quedas. O tapete violentava dia a dia, aveludada e lentamente, nossa vontade. Todas as manhãs, partes de nosso corpo eram arrombadas pelos mudos losangos do carpete. O tapete, agente dos males, o seu pior.
            Almeida sabia que algo urgia. Talvez uma medida extrema. Aquele não era o dia de ganhar-o-pão-nosso-de-cada-dia. As horas se guardaram para outras urgências. A cada segundo um pouco de nós resvalava. Algo drástico necessitava ser feito. Retornamos todos à casa. Álcool inflamável e um fósforo eram o suficiente para devolver a alegria, e, pela lareira, observamos, vitoriosos, a chama restituir cada pedaço da família A. Almeida.
            Por fim, o tapete era cinzas. Uma felicidade intensa tomou nosso corpo, a nos derreter em lágrimas. Do gosto salgado que nos descia à boca, nos estranhamos pelo sentimento que nos vestia. Assemelhava-se mais à tristeza, a uma dor vazia. Por que estávamos, lá, nós tristes, por Deus? Conseguimos, pois, que não? Deveríamos era rir alto. Bem alto. Dobrar a barriga de tanto rir. Mas, qual o quê! Chorávamos todos. Sem dor pra sentir. Chorávamos baixo. Abafávamos nosso constrangimento.
Sem mais do que, Almeida procurou em alguma tapeçaria aberta, por algum tapete à mostra, igual ao outro em peso e medida. De volta ao lar, Almeida estendeu o tapete na posição exata. Voltamos todos decididos ao ponto inicial da manhã, felizes e agradecidos por ainda termos um tapete onde tropeçar.  

IN: Mind the Gap. São Paulo: Editora Patuá, 2011. (mais informações sobre, no blog: mind the gap between the train and the platform)

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