"Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer
[...]
A morte dispôs poltronas para o conforto
da espera. Aqui se encontram
os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.
Ou quase. Primeiro a morte particular,
restrita, silenciosa, do indivíduo.
Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaço de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão perecendo calados.
Somos um em vinte, ramalhete
de sopros robustos prestes a desfazer-se.
E pairamos,
frigidamente pairamos sobre os negócios
e os amores da região.
Ruas de brinquedo se desmancham,
luzes se abafam; apenas
colchão de nuvens, morros se dissolvem,
apenas
um tubo de frio roça meus ouvidos,
um tubo que se obtura, e dentro
da caixa iluminada e tépida vivemos
em conforto e solidão e calma e nada.
[...]
Ó brancura,serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa,
não obstante, irreprimível aproximação de um perigo
[atmosférico
golpe vibrado no ar, lâmina de vento
no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia."
Carlos Drummond de Andrade
4 comentários:
Vera, a Luciana timha comentado sobre você e fico feliz que tenha gostado do livro. Vou vir aqui mais vezes. Um beijo.
P.S.: Gosto muito do Barthes, especialmente do "Aula".
Gabriela, eu não gostei, eu adorei seu livro. Foi uma surpresa boa encontrá-lo ali escondido na estante entre os outros livros do sebo do Bac. Li, lá mesmo, no Satyros, devagar, para prolongar o efeito que o livro me causou. Ah, e venha mais sim, postarei masi Barthes, de quem também gosto muito.
Gostei... do pouco que conheço é sem duvida um dos grandes poetas da lingua Portuguesa!!
Continue divulgando!
Fica aqui um dos meus preferidos, pelo tema abordado, pela forma que é abordado!!
A Agua - Poema de Bocage
"A Água",
de Manuel Maria Barbosa du Bocage.
Um clássico da literatura portuguesa
"A Água"
Meus senhores eu sou a água
que lava a cara, que lava os olhos
que lava a rata e os entrefolhos
que lava a nabiça e os agriões
que lava a piça e os colhões
que lava as damas e o que está vago
pois lava as mamas e por onde cago.
Meus senhores aqui está a água
que rega a salsa e o rabanete
que lava a língua a quem faz minete
que lava o chibo mesmo da raspa
tira o cheiro a bacalhau rasca
que bebe o homem, que bebe o cão
que lava a cona e o berbigão.
Meus senhores aqui está a água
que lava os olhos e os grelinhos
que lava a cona e os paninhos
que lava o sangue das grandes lutas
que lava sérias e lava putas
apaga o lume e o borralho
e que lava as guelras ao caralho
Meus senhores aqui está a água
que rega rosas e manjericos
que lava o bidé, que lava penicos
tira mau cheiro das algibeiras
dá de beber ás fressureiras
lava a tromba a qualquer fantoche e
lava a boca depois de um broche.
Delicioso não?
Saudações de Portugal
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