A escritora Lúcia Bettencourt disse-me, em um e-mail, que estamos sempre a viver a Odisséia, nosso caminho é esse, "um retorno ao lar do qual nos afastamos contra a nossa vontade".
Na maioria das vezes, me sinto uma Penélope munida de caneta bic. Com saudades de mim mesma, engano o tempo, enquanto borro minha mão esquerda de tinta azul. Ja escrevi algo sobre a Penélope que existe em mim:
"Anotações elucidativas para um melhor entendimento do nome Penélope
A quem possa interessar: meu nome é Penélope. Mas, eu desejo intimamente que, ao me conhecerem, me perguntem se choro de manhã e não qual é o meu nome. É muito difícil ser Penélope, quando, diante do outro, tenho apenas um nome como forma de apresentação.
Quero me apresentar a vocês com minhas lágrimas, meus sonhos, meus delírios, minhas risadas estranhas, e não apenas com meu nome. Menos com minha profissão, cor ou estado civil. Sou muito mais do que um formulário de banco. Posso rir, chorar, pensar, posso sentir por meus poros a Vida que se deságua em mim.
Tenho muito mais a oferecer do que simples fórmulas prontas de felicidade. Sei que não gostam de elucubrações quando urge uma ação em um mundo que se movimenta. No entanto, meu pensamento se movimenta. Não basta?
Eu nasci no dia primeiro de um abril qualquer. Assim, procuro me manter viva, sabendo que em cada dia primeiro de cada abril, doze pedaços de mim morrem aos poucos nos outros ou em mim mesma. Nasço de novo a cada primeiro de abril, viva, pulsante, intumescida de existência.
Posso me reinventar a cada dia primeiro de abril. Posso ser alguém mais do que uma mulher de vinte, trinta, quarenta, cinqüenta anos. Pelos dias que caminham sob meus pés, posso ser também todas as mulheres de todas as idades.
Sou criança, adolescente, mulher, jovem, velha. Gorda, magra, feia, bonita. Sou uma mentirosa, por excelência, assim determinou meu aniversário. Talvez, por isso seja intumescida de existência. Avultada com meus capitosos anos.
Quem sabe, um dia, paro de sonhar. Porém, enquanto o mar não seca, vivo. É este o pacto. Viver até que o mar se seque. Até lá, continuo sonhando. Meu médico me recomendou que sonhasse para que não morresse de infarto: uma dose cavalar de sonho por dia, sonhe sem moderação!
Enquanto sonho, esqueço quem sou. Como Prometeu, acorrentaram-me a esta vida que disseram ser minha, ao passo que o dia-a-dia devora meu fígado. Contudo, eles não sabem que, como Prometeu, posso recriar outro fígado, enquanto sonho.
Com a veracidade de uma mentirosa que não sabe o que é, eu sonho. Ao menos, sonho. Ao mais, sonho. Sonho para não ser. Sonho para ser. Sonho para ser o não ser. Sou, simplesmente sou. Até que sonho. Sou, complexamente, sou. E, mais. Posso criar outros fígados. Enquanto sonho."
É isto.