"Querida, você tem um coração na garganta"
Minha avó

terça-feira, 24 de maio de 2011

Garrafas ao Mar

"Encontramos um livro de etiqueta, sem capa, sem nome de autor ou data — o que lhe deu uma nobreza de documento achado em garrafa ao mar. Tornado por tais circunstâncias misterioso e cheio de autoridade, abrimo-lo como ouviríamos a verdade tão verdadeira que até anônima já era.
Abrimo-lo é modo de dizer. O livro abriu-se sozinho, numa página gasta certamente por mãos ansiosas por bem procederem na vida. O capítulo tratava de senhoras e elevadores. E, antes que as associações mais extravagantes nos ocorressem diante da aproximação insólita das duas palavras, lemos: uma senhora deve evitar de todo modo viajar de elevador. As razões o livro não as dá. Provavelmente seriam óbvias.
Mas nem por ser tão categórico, o autor deixou de ser realista ou benevolente. De fato acrescentava: no caso de ser absolutamente necessária tal viagem, que as senhoras se mantivessem sentadas.
Sentadas no elevador? Se encolhemos os ombros, tal não deveria ter sido a atitude da dona das antigas mãos que seguravam o livro. Ela talvez tenha estremecido: “Meu Deus, ontem mesmo fui obrigada a entrar no elevador...e fiquei de pé!ah, o que não devem ter pensado de mim!”
Não nos cabe o direito de rir dessa aflição; outras, embora mais modernizadas, nós a temos.
O que nos ocorreu e que estava longe do autor a idéia de que um dia seu livro serviria, por um momento ao menos, para desvalorizar o imperativo da etiqueta e tirar a gravidade das gafes. E que sugeriria uma idéia infelizmente impossível de ser aplicada: a de que só se deveria ler o livro de etiqueta depois que este ficasse perdido por uns cem anos. Quanto mais velho, mais útil."
(Comício – 30 de maio de 1952)

quinta-feira, 5 de maio de 2011

A irmã de Shakespeare

"Uma escritora inglesa — Virginia Woolf — querendo provar que mulher nenhuma, na época de Shakespeare, poderia ter escrito as peças de Shakespeare, inventou, para este último, uma irmã que se chamaria Judith. Judith teria o mesmo gênio do seu irmãozinho William, a mesma vocação. Na verdade, seria um outro Shakespeare, só que, por gentil fatalidade da natureza, usaria saias.
Antes, em poucas palavras, V. Woolf descreveu a vida do próprio Shakespeare: freqüentara escolas, estudara em latim Ovídio, Virgílio, Horácio, além de todos os outros princípios de cultura; em menino, caçara coelhos, perambulara pelas vizinhanças, espiara bem o que queria espiar, armazenando infância; como rapazinho, foi obrigado a casar um pouco apressado; essa ligeira leviandade deu-lhe vontade de escapar — e ei-lo a caminho de Londres, em busca de sorte. Como tem sido bastante provado, ele tinha gosto por teatro. Começou por empregar-se como “olheiro” de cavalos, na porta de um teatro, depois imiscuiu-se  entre os atores, conseguiu ser um deles, freqüentou o mundo, aguçou suas palavras em contato com as ruas e o povo, teve acesso ao palácio da rainha, terminou sendo Shakespeare.
E Judith? Bem, Judith não seria mandada para a escola. E ninguém lê em latim sem ao menos saber as declinações. Às vezes, como tinha tanto desejo de aprender, pegava nos livros do irmão. Os pais intervinham: mandavam-na cerzir meias ou vigiar o assado. Não por maldade: adoravam-na e queriam que ela se tornasse uma verdadeira mulher. Chegou a época de casar. Ela não queria, sonhava com outros mundos. Apanhou do pai, viu as lágrimas da mãe. Em luta com tudo, mas com o mesmo ímpeto do irmão, arrumou uma trouxa e fugiu para Londres. Também Judith gostava de teatro. Parou na porta de um, disse que queria trabalhar com os artistas — foi uma risada geral, todos imaginaram logo outra coisa. Como poderia arranjar comida? Nem podia ficar andando pelas ruas. Alguém, um homem, teve pena dela. Em breve ela esperava um filho. Até que, numa noite de inverno, ela se matou. “Quem”, diz Virginia Woolf, “poderá calcular o calor e a violência de um coração de poeta quando preso no corpo de uma mulher?”
E assim acaba a história que não existiu. "

Tereza Quadros (Comício – 22 de maio de 1952)

In: Clarice Lispector, Correio Feminino (coluna feminina). Organização e prefácio de Aparecida Maria Nunes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.