"Querida, você tem um coração na garganta"
Minha avó

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Mais Telefone Sem Fio

No apartamento, avistou a sombra larga da mãe sobre os papéis jogados a sua frente, na mesa improvisada do centro da sala. Esqueceu-se por um momento do aniversário.  
— Eu sou desse tamanho aqui — apontava pro boneco de porcelana.
— Vai brincar, meu bem, a mamãe tá trabalhando. — Sim, trabalhava naquele domingo sua mãe, envolta por papéis e letras miúdas.                    
 Restava o irmão Mauro, o olhar adulto e a voz destoante. Alma preparou qualquer brincadeira pré-requentada. Mas o irmão já se disfarçava na espera da adolescência. 
— Alma, não! Que droga.
— Então vai se foder — desafiou.
Queria ser adulto, né. Que seja. Correu pra janela e começou a cuspir. Divertiu-se com a possibilidade de sua saliva tocar a cabeça de alguém ou de algum.  Distraída com seus cuspes, a pequena não percebeu o toque agudo da campainha. Mauro abriu a porta. Ante seu corpo se formou a sombra de um homem alto. A irmã conteve-se na janela, encurvada sobre seus cuspes. Mas eis que surge na sua frente um pouco de Alma na voz daquele homem:
— Não vai me dar um beijo, menina? — o homem alto se dobrou ao tamanho da menina. — Trouxe um presente pra você. Abra.
Alma se quedou estática, sem olhar pro homem ou pro presente. Sua mãe arriscou algum movimento:
— Alma, minha filha, que modos.
O homem se desculpou à mãe enquanto tentava animar a filha chacoalhando o presente. Mas a menina apenas conseguia se lembrar de quando o irmão havia lhe garantido que o pai que nunca viram iria visitá-los no aniversário dela. Tapou os ouvidos e cuspiu nos sapatos engraxados daquele homem. A mãe se indignou de pronto com o cuspe da filha:
— Alma! — olhou pro homem alto — perdão. parece bicho do mato essa aqui —voltou-se pra pequena com sua melhor bronca — Tá de castigo, já pro quarto. Antes dá tchau direito pra este homem educado que ainda traz um presente pra você.
Eu te odeio — foi o que saiu da boca da menina, um ódio sem direção, sem alvo, lento e denso como seus cuspes. 

*

Possível leitor, o ar está um pouco seco. Respiro a fumaça do caminhão, logo à frente. Respiro esta tarde poluída. Carlos dirige, não sente nada.  Que quando em quando me vem este perfume suave e esta sensação doce.  Então me esforço, mas não consigo me lembrar da alegria. Um pouco pesado, sei, como o monóxido de carbono. Carlos sorri, acredita que gosto dele. Eu penso em outros e sorrimos os dois. Carlos e suas mãos grandes. Combinamos, cada qual com suas mãos. E minha mão esquerda, a adúltera. Voltemos, mão esquerda, ao nosso segredo. Fique leitor, não se sinta invasor, dividiremos pois segredos com você. Aliás, ia me esquecendo. Você também é leitora e eu, um segredo unisex. 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Telefone Sem Fio - Lançamento




Aos meus cinco leitores: os convido para o lançamento do meu romance Telefone Sem Fio, pela Editora Patuá. Será no significativo dia 23 de abril , no Hussardos Clube Literário, a partir das 19h30.

Capa: Leonardo Mathias.

Um trecho:

Uma pausa, silencioso leitor. Pois que eis um pouco de mim aqui neste posto de gasolina. Desses onde nunca nos é suficiente seu combustível, a viagem sempre é maior.  O banheiro, meu refúgio de Carlos.  Contraio as pernas, minto que estou apertada e pra lá me direciono. Não consigo erguer meus olhos, como se o piso molhado deste posto fosse a única saída. O cheiro forte de gasolina quase me derruba, somos auto-inflamáveis. Acho que estou desaprendendo a andar. Um pé depois do outro, não é assim que nos ensinam, percorrer o solo pé ante pé? Vamos lá, Alma, você consegue. A placa caída com um W apagado indica a porta do meu esconderijo. Entro de cabeça baixa. Respiro o lugar imundo de vestígios dos outros. Não há papel higiênico, apenas, no chão, seus pedaços. Também não há espelho, posso imaginar meu reflexo na água suja sob meus pés. Quantas pessoas já passaram por aqui, quantos reflexos guardam a água suja? Puxo a cordinha da descarga sem qualquer necessidade, com o único intuito de fingir um alívio que não sinto. Abandono meu pequeno jazigo, enquanto piso em uma sombra alongada. A voz transborda o corpo. Dissimulo um olhar distante, afasto meus olhos do espaço que ocupa. Em vão, a dona da sombra alongada se aproxima. “A chave do banheiro”, ordena. Faço-me surda. “Colega”, quase cospe, “a chave”, balança o corpo e a sombra, “preciso da chave”, grasna. “Não tem chave”, finalizo. “Você? Tá bem?”, ela insiste em mim. Apenas movimento a cabeça em um nãosimnãosimsim. “A mulher tá chorando!”, “a mulher” sou eu, difícil e impaciente. Não quero me lembrar de hoje, pode ser? Carlos percebe e nos socorre. “Alma?”, se esconde em mim. “Tudo bem?”. Chão, Alma, olhe pro chão, ela pode virar pedra. “Sua mulher tá chorando”, conclusão brilhante. “Sim”, ele enxuga a testa e continua “estamos passando por um momento difícil. Seu irmão.” Carlos tem uma incrível facilidade em desperdiçar seus momentos mais doídos com estranhos, na beira de estradas. Aponta pra alguma direção que não se vê e apenas diz “Enterro”.  Por fim, envolve-me sobre seu corpo, e nada mais a ser dito. Vamos os dois pro carro, indevidamente abastecidos. A sombra se alonga ainda mais pelo sol baixo e tragédia nossa. Encolho-me sobre o meu caderninho.