"Querida, você tem um coração na garganta"
Minha avó

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Esquinas

Ele ultrapassava a magreza. Na realidade, expunha seus ossos saltados sob uma fina pele. Um quase nada a errar alguma direção na Av. Paulista. Passou por mim, mas não me viu. Enxergava tão e somente o reflexo de seu peso de fome. A miséria é narcisista, acredito, inflinge sua imagem, qual um espelho ao miserável. Sem camisa - também doía um quê de culpa nos outros - ele cantava alto e forte, como se o canto o sustentasse. Ressoava a frase: “só eu sei, as esquinas por que passei”.
A partir daquele instante entendi Djavan.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Manias Parte i²

O sorriso constante de meus lábios machucados provém da minha inabilidade no trato com as pessoas, e não desta “bondade” que insistem em incluir na lista de minhas qualidades, a qual é bem pequena, diga-se.

Lúcia Bettencourt, Eça de Queiroz e Homero

Outra(s) raspadinha(s): (estas inspiraram meu blog, e acho que Lúcia B. sabe disso) Não é difícil perceber o Canto V da Odisséia no conto "A Perfeição" de Eça de Queiroz . O conto "Perfeição" de Lúcia B. vai mais além. Oculta canto e conto em um só fôlego nas entrelinhas de suas frases.

Obs: Quem nunca leu Odisséia, provavelmente já o leu em vários outros autores.

A Perfeição

"E, através da vaga, fugiu, trepou sôfregamente à jangada, soltou a vela, fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as misérias - para a delícia das coisas imperfeitas!"

Eça de Queiroz

domingo, 25 de novembro de 2007

Crime e Castigo

Meu crime mais grave; ter descoberto que pertenço ao grupo dos ordinários.

Para um retrato de Thomas Mann

"Seus olhos eram azuis ou azuis cinzentos, porém, naqueles momentos em que ele encontrava a si mesmo, fulguravam negros e brasileiros, como se algo ardesse estagnadamente e esperasse seu momento de inflamação."

Theodor W. Adorno - Tradução: Idalina Azevedo da Silva

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

"Por falta de democracia na Venezuela, não é"


Cale-se, cale-se, você me deixa loooooucooooo!

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Arte Poética

Outra raspadinha - quanto aos aforismos de Joyce postados há algum tempo (16 de agosto de 2007), uma raspadinha interessante:
"[...] a estrutura da tragédia mais bela tem de ser complexa e não simples e ela deve consistir na imitação de fatos inspiradores de temor e pena - característica própria de tal imitação - [...]
Às vezes, os sentimentos de temor e pena procedem do espetáculo; às vezes do próprio arranjo das ações, como é preferível e próprio de melhor poeta. [...] como o poeta deve proporcionar pela imitação o prazer advindo da pena e do temor, é evidente que essas emoções devem ser criadas nos incidentes." Aristóteles

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Tropa de elite

Hoje estréia o filme. Deixarei aqui algumas despretensiosas considerações acerca deste, nas palavras da mídia, fenômeno do cinema nacional. Sim, já assisti! E quero vê-lo no cinema. Gostei muito, mas acredito que o filme peca em alguns aspectos. A realidade do Rio de Janeiro é retratada sob o olhar de um capitão do Bope, e nós, espectadores, não temos o distanciamento necessário para dissociar uma do outro.
Por outro lado, expõe uma ferida abafada e nos provoca. Não passamos incólume pelo filme, e isso é muito bom.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

domingo, 23 de setembro de 2007

"BALANÇO

Que fica de quem passa? Um eco de mágoa
ao ouvido da tarde? Uma pausa de palavras
na frase do instante? Uma interrupção de passos
a caminho da porta? Um sal de sentimento
no coraçã da amada? A vida esfarelada
numa dissipação de rumos? Ou um peso
de esquecimento na sombra da memória?

Mas quem passa não pensa no que fica.
se os passos o levam para onde espera
ficar; e se o seu destino é a passagem,
onde ficar é sair de onde não chegou a
habitar, é o tempo que o obriga a não olhar
para onde não há-de voltar, mesmo que aí
tenha deixado o que pensou consigo levar.

Náufrago sem ilha nem barco, ou
marinheiro preso ao porto, é ele o seu próprio
fim, como se a cada momento não soubesse
que não é dele o que leva, e só é dele o
que perde, como se o não quisesse guardar,
para que chegue mais depressa, ao cair da noite,
a esse cais onde ninguém o irá esperar.

E repete, então, o que não devia fazer, para tudo
fazer de novo, como se tivesse de o fazer"

Nuno Júdice

sábado, 15 de setembro de 2007

O GRITO


Meio metro de raiva suave a tomar conta de seu corpo lento, enquanto sua blusa sutilmente gruda-se à pele, translúcida de suor. Aquele suor seco, frio, em contraste à maciez da pele morna. Suas axilas ardem escaldadas pelo salgado vivo de sua raiva.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Sem fôlego

O que me sufoca, de fato, é esta noite presa ao ralo da manhã.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Revista Língua Portuguesa

"O vôo do inseto-orquídea
Como Drummond explora o jogo de sentidos contido numa palavra

Áporo é o inseto cavador, é nome de orquídea e de todo problema difícil ou impossível de se resolver. Um significante tão cheio de significados é bom pretexto para um poema de grande riqueza, como é o Áporo de Drummond. Francisco Achcar vê nele, sob a capa da brincadeira, um ponto de cruzamento de três temas recorrentes da poesia drummondiana: a existência, a sociedade e a própria poesia. Décio Pignatari, em Contracomunicação (Perspectiva, 1971), sugere que a palavra IN-SE-TO do primeiro verso de Áporo, separada em sílabas, desencadeia no poema aliterações (repetições de fonemas) que ele chama de verticais, com dois trajetos principais: percurso-inseto e percurso-orquídea."

Este é um trecho de minha matéria para a Revista Língua Portuguesa, sobre Carlos Drummond de Andrade.

Errata: Lúcia Bettencourt, antes de ser Ph. D, é escritora!

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Um minuto ou dois de silêncio...

...,em meio à bagunça do entrehoras, para a leitura deliciosa de dois poemas de Lúcia Bettencourt. Por este blog se tratar de um palimpsesto, estes poemas também valem como homenagem aos 20 anos da morte de Drummond, que ocorreu no dia 17 de agosto.

Dantesca

No meio do caminho
não havia nada
nem pedra
nem buraco no chão

No meio do caminho
não encontrei
nem virgílio
que me guiasse
nem virgília
que me explorasse

No meio do caminho
por um triz
não encontrei
beatriz
que fora dançar
quadrilha
com josé

No meio do caminho
o fim já estava escrito

No meio do caminho
só me restava retornar
ao início da frase
parafrasear
em nova freqüência
modulada
o que para os outros
é estrada
e para mim
tropêço

Criação

E agora, Maria?
Onde está o poema inspiração?
Dá pra seguir este
padrão?
Pedrão, pedregulho, uma pedreira,
inteira,
no meu caminho.

Dá pra olhar com as pupilas fatigadas do outro?
Ou é melhor dar a volta
por cima ou por baixo
o negócio é se virar
Jacaré ou lobisomem
mas prefiro
escalar a pedreira
ou virar a pedra
re-criar o padrão
inventar o caminho
a contra-mão da palavra.

Lúcia Bettencourt

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Patricia Highsmith

Outra raspadinha: quem leu The Brooklyn Follies de Paul Auster precisa conhecer o misterioso pintor Derwatt de Patricia Highsmith em Ripley Under Ground. (ou vice-versa...)

Arte segundo um artista jovem

"A piedade é o sentimento que faz parar o espírito na presença de algo que seja grave e constante no sofrimento humano e o une com o sofredor humano. O terror é o sentimento que detém o espírito na presença de seja lá o que for que seja grave e constante no sofrimento humano e o liga à sua causa secreta [...] A beleza expressa pelo artista não pode despertar uma emoção que é cinética, ou uma sensação que é puramente física. Ela desperta ou deve despertar, ou induz ou deve induzir um êxtase estético, uma piedade ideal ou um terror ideal, um êxtase que perdura, que se prolonga e que acaba, por fim, dissolvido pelo que eu chamo o ritmo de beleza." James Joyce, tradução de José Geral Vieira

domingo, 12 de agosto de 2007

MANIAS PARTE i

"da discussão com os outros fazemos retórica e da discussão com nós mesmos fazemos poesia" W. B. Yeats

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

RAYUELA

Dia desses, rodando à noite pelo centro velho da cidade de São Paulo (o que adoro) entrevi, em meio a carros policiais, garotos e garotas de programa, desastres aéreos e urbanos, uma menina solitária jogando Amarelinha na calçada do Pateo do Collegio. Não é Cortazar demais?

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

MANIAS PARTE - JÁ NEM SEI...

Fujo delas! Tenho medo de morrer com o bico de uma pomba cravado em minha testa. Elas ou eu somos cegas quando alçamos vôo.

ESTRANGEIROS PARA NÓS MESMOS

"Estranhamente, o estrangeiro habita em nós, ele é a face oculta da nossa identidade." , Julia Kristeva

terça-feira, 24 de julho de 2007

"Morte no Avião" trechos

"Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer

[...]
A morte dispôs poltronas para o conforto
da espera. Aqui se encontram
os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.

Ou quase. Primeiro a morte particular,
restrita, silenciosa, do indivíduo.
Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaço de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão perecendo calados.
Somos um em vinte, ramalhete
de sopros robustos prestes a desfazer-se.

E pairamos,
frigidamente pairamos sobre os negócios
e os amores da região.
Ruas de brinquedo se desmancham,
luzes se abafam; apenas
colchão de nuvens, morros se dissolvem,
apenas
um tubo de frio roça meus ouvidos,
um tubo que se obtura, e dentro
da caixa iluminada e tépida vivemos
em conforto e solidão e calma e nada.

[...]

Ó brancura,serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa,
não obstante, irreprimível aproximação de um perigo
[atmosférico
golpe vibrado no ar, lâmina de vento
no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia."

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Mãos em punho


Aconteceu. Um dia, acordou, sentou-se à mesa e perdeu a fé. Já não acreditava em nada. Tantas vezes, tentaram persuadi-la de que viver já era a vida, mas naquela manhã, desacreditou. Revirou os olhos ao seu esgarçar de sonhos, como que apática diante desta coisa que é acordar todos os dias. “Não se preocupem comigo, é que não acredito...”, disse, de pestanas coladas, mãos em punho, a esmurrar sua Fortuna (....)

quinta-feira, 19 de julho de 2007

quinta-feira, 12 de julho de 2007

As cartas não mentem jamais


PS: Ana Rüsche, me perdoe ao imitar sua idéa, mas, achei irresistível transformar um Post em carta, e dessa forma poder escrever para alguém com quem costumava freqüentemente me corresponder quando não havia e-mail (sim, já sou uma balzaquiana!)

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Autobiografia - mais antiga que ....

"Do autor ao leitor
Eis aqui, leitor, um livro de boa-fé.
Adverte-o ele de início que só o escrevi para mim mesmo, e alguns íntimos, sem me preocupar com o interesse que poderia ter para ti, nem pensar na posteridade. Tão ambiciosos objetivos estão acima de minhas forças. Voltei-o em particular aos meus parentes e amigos e isso a fim de que, quando eu não for deste mundo (o que em breve acontecerá), possam nele encontrar alguns traços de meu caráter e de minhas idéias e assim conservem mais inteiro e vivo o conhecimento que de mim tiverem [...]
[...]E agora, que Deus o proteja. De Montaigne, em primeiro de março de 1580."

AULA - BARTHES

Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer. Ao passo que na literatura a língua é desviada e, conseqüentemente, se é permitido ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Desculpem-nos pelo transtorno

Fui para Pasárgada. Volto, quem sabe, dia 10/07.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

PELA FLAP!

Mais especificamente pelo Bactéria, descobri um livro que me tirou o fôlego: Dona Estultícia de Gabriela Kimura.

PÓS FLAP!

Deixei o Satyros I, no domingo, com uma certeza: é necessário um diálogo urgente entre a academia e os escritores. Já está ultrapassado o velho discurso "ainda existe literatura?", claro que existe, a questão não é essa. O problema é outro, bem mais sério. A academia (salvo raras exceções) torce o nariz para aqueles que ainda não foram laureados com algum Jabuti da vida, ou que não receberam o aval da fortuna crítica (em outras palavras, que não estão mortos), e muitos escritores bons, que poderiam despertar o prazer pela leitura nos vários "não leitores", são desprezados.
Há que se considerar que dos professores engendrados pela academia, muitos correm o risco de queimar os livros a 451ºF em sala de aula ao apresentar clássicos, com o peso que a palavra "clássicos" carrega, por suas escolas demarcadadas por datas (romantismo, realismo, etc), para adolescentes que preferem o que a literatura oferece em sua essência: a transgressão.

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Manias Parte III

Uma parte inexata de mim insiste no sofrimento.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

TANIZAKI

Outra raspadinha: Para quem gostou de "O sol se põe em São Paulo" de Bernardo Carvalho, uma sugestão de leitura, no mínimo, interessante: Junishiro Tanizaki. Acho incrível que críticos, ao avaliarem o livro do escritor brasileiro sequer citem, ao menos, a obra Voragem do escritor japonês, em que também há um triângulo amoroso, narrado por uma voz que se confunde entre as personagens (persona, neste caso, é mascara!) e as cartas amorosas.

A razão de minha loucura

"A tecnologia ameaça a humanidade do homem, mas não alcança à loucura, e nesta, a humanidade do homem se refugia." Clarice Lispector

FLAP!

Só para lembrar: nesse final de semana teremos FLAP. Entre os escritores e poetas convidados, destaco: Marcelino Freire, Glauco Mattoso, Andréa Del Fuego, Santiago Nazarian e Lourenço Mutarelli. O link do evento está ao lado.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Manias Parte II

Gosto de letras miúdas e sutilmente inclinadas. Havia uma época em que procurava imaginar como era a letra das pessoas. Buscava a perfeição pela caligrafia dos desconhecidos. Era interessante imaginar os destros e os canhotos, as formas de suas palavras definidas pela ponta do lápis. Discretamente, observava os hábeis, que seguravam a caneta com firmeza, definiam com precisão o que escreviam, a quase atingirem o sublime com a mão direita. Provavelmente, o porquê de minha obsessão residia no fato de ser canhota e ter uma letra horrível, a sempre manchar minha mão esquerda trêmula e o papel rasurado com tinta. Parei com a mania de imaginar a caligrafia dos transeuntes quando meus garranchos encontraram guarida nas fontes Arial e Times New Roman.

Manias Parte I


Tenho uma mania um tanto, diria, bizarra. Gosto de sacos plásticos. Coloridos, em formas diversas, a carregarem pedaços da vida, comprada em liquidação no mercado da esquina. É só me aproximar do caixa, e eles estão ali, gratuitos, prontos a conduzirem fragmentos utilitários do cotidiano até minha casa.
Qual minha alegria ao empacotar minhas compras, é como se também embrulhasse pedacinhos de mim mesma, mantendo-os hermeticamente fechados até que se desamarre o nó. O barulho, ah, aquele barulinho oco que se faz quando as compras são embaladas. E minha voz, que se revela melada com a frase: "Você tem mais saquinho?"

domingo, 27 de maio de 2007

E Caetano cantou...

E deixe os portugais morrerem à míngua ."Minha pátria é minha língua"

Essa é de Camus...

Oui, j’ai une patrie, la langue française

Obs: Lú, querida, corrija, por favor, meu pobre francês (tadinho!!!!)

Minha pátria, minha língua

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie – nem sequer mental ou de sonho –, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. "Fabricou Salomão um palácio..." E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não – a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

Livro do Desassossego, por Bernardo Soares. Vol. I, Fernando Pessoa.

segunda-feira, 14 de maio de 2007

E NO ARMÁRIO...


CURUPIRA


Imprecisa. A vida. Virada. Presa à fatalidade de se andar para frente. Quando fecharem meus olhos...enganarei o tempo, e serei curupira.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

SEM TROCADO

É verídico! Hoje, deparei com um mendigo que abordava as pessoas na rua com um pedido inusitado: "hei, moço, me dá um sorriso?". E eu pergunto: a culpa é de quem?

NARCISO


Apenas eu. Ninguém mais a contar o que vê à minha frente, ao espelho. Um rosto mudo, a imitar meus lábios entreabertos, as falhas exatas de minhas sobrancelhas, os fios brancos desregulares aqui e ali. Tento sorrir. Ela também sorri, seu sorriso líquido, um pouco riscado. Quando pisco não a vejo. Apenas uma lágrima na maçã do rosto. Mancho-me de pasta de dente, quando postada à sua frente. E ela me interpela com seus olhos ocos. Sou de vidro. Sem que notem, derreto com os anos. E ela...É igual hoje, mas amanhã, não. Eu, ela. Esta, que, apática, me denuncia com sua imagem. Eu a amo, sim, eu a amo, mas nunca saberei quem ela é.

quarta-feira, 2 de maio de 2007

UM POUCO DE POESIA SINFÔNICA

"Freude, Schöner Götterfunken,Tochter aus Elysium, Wir betreten feuer-trunken,Himmlische, dein Heiligtum!Deine Zauber binden wieder,Was die Mode streng geteilt;Alle Menschen werden Brüder,Wo dein sanfter Flügel weilt [...]"

ENTRE OS DEDOS

Triste e trêmula, tentou encarar o bicho, uma ratazana comprida e, inevitavelmente, má. Suspendeu o nojo pelo nariz, àquela altura sem ar. O bicho parecia odiá-la pela cauda fina. Seus olhos grunhiam, um grunhido de noite alta. Tudo dela era asco, mas, não importava, precisava, a menina, vencer o medo do asco. Rato, é um rato, tentou se convencer. O arrepio das costas tomou conta de todo o corpo, como que a transportá-la ao dele, mundo roído...
Não sentia mais suas pernas, caiu sobre elas, aproximando-se ainda mais do bicho, a essa altura, quase morto. Algo nele remeteu-a a seu próprio ser. Precisava senti-la. Quase inconsciente encostou suas mãos na ratazana, que gritava e se debatia de medo.
Sentiu o calor de seu corpo áspero, até que pousou a mão direita no peito do bicho, sentiu seu coraçãozinho se debatendo.
Pegou com cuidado o animal nos braços e com um carinhoso zelo levou-o a um lugar quente.
Enquanto cavava um buraco grande no quintal da casa, viu o rato morrer. Enterrou o pobre animal e seu medo por entre lágrimas e alívio.

quinta-feira, 26 de abril de 2007

O Fim

"Os caixões norte-americanos são melhores."
Marcelino Freire, conto The End In: Angu de Sangue, p. 119*

*Repare no número da página. Alguma semelhança com 11/9, segundo constatou um leitor de Marcelino Freire? E o livro foi publicado pela primeira vez em 2000!!! Um visionário? Acho que Marcelino é meio bruxo, isso sim!

quarta-feira, 25 de abril de 2007

TRILHAS DEGLUTIDAS

Acerto o movimento dos braços com as pernas em sincronia com meu olhar gravemente determinado. Como que sem lógica, procuro adequar-me abruptamente ao andar simétrico de dois pés chatos. Caminhar é meu secreto contato com o passado pisado destas ruas.

The Volcano Lover

"She experiences pain, not the pain (more precisely, displeasure) of a bad odor, for she knows nothing of good or bad, cannot afford to make this luxurious distinction (every odor is good, because any odor is better than no odor, oblivion), but the pain of loss. "

Susan Sontag

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Quando os nossos corpos se separaram

quando os nossos corpos se separaram olhámo-nos quase a desejar ser felizes.
vesti-me devagar, mas o corpo a ser ridículo. disse espero que encontres um homem
que te ame, e ambos baixámos o olhar por sabermos que esse homem não existe.
despedimo-nos. tu ficaste para sempre deitada na cama e nua, eu saí para sempre
na noite. olhámo-nos pela última vez e despedimo-nos sem sequer nos conhecermos.*

_josé luís peixoto

*O grupo português A Naifa musicou este poema. O link para o site de A Naifa está na minha lista de links, vale a pena dar uma conferida.

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Sou cidadã aprumada, meu bem. Atravesso sempre na faixa, escovo meus dentes após as refeições, pago minhas contas, tomo todos meus remédios pontualmente, ah, e, nunca me esqueço de, pelo menos uma vez por dia, molhar minha garganta com uma dose caprichada de loucura.

ELES QUEBRAM O MUNDO

Eles quebram o mundo Em pedacinhos Eles quebram o mundo A marteladas Para mim não faz diferença Não faz diferença alguma Ainda me sobra muito Ainda sobra muito Basta que eu ame Uma pena azul Uma trilha de areia Uma ave assustada Basta que eu ame Um ramo frágil de ervaUma gota de orvalho Um grilo do campo Eles podem quebrar o mundo Em pedacinhos Ainda me sobra muitoTerei sempre um pouco de ar Um filete de vida Uma nesga de luz no olhar E o vento nas urtigas E mesmo se, mesmo Se me prenderemAinda me sobra muitoAinda sobra muito Basta que eu ame Esta pedra corroída Estes ganchos de ferro Onde um pouco de sangue se demora Eu amo, eu amo A madeira gasta da minha cama O estrado e o colchão de palha A poeira do sol Amo o postigo que se abre Os homens que entraram Que avançam, que me levam A reencontrar a vida do mundo A reencontrar a cor Amo este par de altas traves Esta lâmina triangular Estes senhores vestidos de preto É minha festa e me orgulho Eu amo, eu amo Este cesto cheio de farelo Onde vou pousar a cabeça Oh, eu amo deveras Basta que eu ame Um raminho de erva azul Uma gota de orvalho Um amor de ave assustada Eles quebram o mundo
Com seus maciços martelos Ainda me sobra muito Ainda sobra muito, meu coração.

Boris Vian* Tradução: Ruy Proença

*Esta é outra faceta não tão conhecida (ao menos para mim, hahaha) do escritor Boris Vian (A Espuma dos Dias e Vou Cuspir no seu Túmulo). Ele também foi saxofonista e compositor. Muitas de suas músicas foram regravadas sob a linda voz da cantora brasileira Letícia Coura (do Teatro Oficina).

domingo, 15 de abril de 2007

SINAL DE VIDA

Manhã violenta, além de um sonho como garantia. Da cortina, uma nesga de sol acorda meu à toa adormecido coração. Sob o amarelo latente da aurora, entendo. Morosamente, abro os olhos, sem que assim o deseje. Circulo pela casa ainda nua de sono. Olho pela janela, o mundo pulsa. De olhos fechados, abro a boca, na esperança de que pela garganta se ouça o grito, capaz de ressuscitar cada sonolento instante desta manhã. A cidade dorme. Uma única frase se ouve no silêncio da alvorada: “...estou viva!!!!!!”

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Hoje

Dia do beijo....

quinta-feira, 12 de abril de 2007

COM A MÃO CHEIA DE HORAS

"COM A MÃO CHEIA DE HORAS, assim tu me
[vieste - e eu disse:
o teu cabelo não é castanho.
Fácil o puseste na balança da dor: era bem
[mais pesado que eu...
Eles chegam de navio e o carregam, eles põem
[o teu cabelo à venda nos mercados
[do prazer -
Tu me sorris bem lá no fundo, e eu choro para
[ti da concha leve da balança.
Choro: o teu cabelo não é castanho, eles
[oferendam essa água do mar, e tu lhes
[dás os cachos dos cabelos...
Murmuras: já preenchem o mundo comigo e,
[para ti, eu sou apenas uma
[passagem no peito:
Dizes: assume a folhagem dos anos - já é
[tempo de te aproximares e me beijares!
A folhagem dos anos é castanha, mas o teu
[cabelo não"

Paul Celan Tradução: Flávio R. Kothe

OUTONO

Três coisas boas do mês de abril:
!meu aniversário
@cheiro cinza das folhas
#ventinho gostoso de outono

terça-feira, 10 de abril de 2007

Dicionário fragmentado

Arranha-céu S.m. Urb. Impressão imediata quando, à sombra de um edifício, ergo meus olhos ao rasgado céu de São Paulo

Anoitece [De anoitecer + o pl. de tristeza] V.i. À noite, a noite tece, tece noite

Água-oxigenada S.f. Inf. Água oxigena o nada, quando submerso, meu corpo (copo) vazio.

Anotações elucidativas para um melhor entendimento do verbete SAUDADE

O pronome “nós” enfrenta a solidão urbana na cidade de São Paulo. Já é prístina sua conjugação correta, que se confunde com os solilóquios matinais do “eu” e com a amorfa gente evocada a cada “nós” anoitecido.

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Embriagai-vos







"O mundo não merece nossa lucidez" Caio Fernando Abreu

quarta-feira, 4 de abril de 2007

terça-feira, 3 de abril de 2007

Mais Penélope

Pela janela, Penélope percorre os dias, a prolongar as horas entre um cigarro e outro, como se lembrar-se de algo ou de alguém fosse a vida, fumável, enquanto nos acomodamos placidamente na cadeira. Todos os dias, pela janela, quando sobra tempo para pensar no pouco tempo que lhe resta para ser “feliz”, ela se arrasta aos ponteiros com o cinzeiro sob seus dedos longos e amarelos. Pela janela, constata a impossibilidade de ser “feliz”. Não se casaria novamente, suas manias, já amadurecidas e bem cuidadas pelos anos solitários, afastaram de si qualquer hipótese de uma nova vida a dois. Agora seria apenas ela e suas bolsas de crochê, além de uma enorme saudade do futuro que inventara um dia...*

"IDADE

É o tempo,
Que lhe corta os dias
O mesmo
Que me conta os casos,

Dos quandos,
Que eu não mais ouvia,
Aos comos
Sem porquês dos atos.

É dele
Meu desenho à pele,
O mapa pelo qual escapo
Da velha juventude eterna.

Ao tempo
Meu melhor bom dia.
Sem medo do que o sol me tira
Me farto do que a luz me soma."

Andrea de Barros

domingo, 1 de abril de 2007

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"acordo logo durmo

durmo logo acordo

nem memórias nem diários

comigo mesmo diálogo

daqui até ali

dali até logo"

Paulo Leminski

Pelo ralo

Que desperdício. Uma lágrima, tão salgadamente minha, escoa ralo abaixo enganada às gotas do chuveiro. Procuro intensamente por outra tão especial, mas o vapor do banho embaça minha visão do avesso.
Estremeço ao imaginar que algum pedaço de meus dias chorados irá saciar a sede de um rato de esgoto. Um frio de asco acomete meus pensamentos pela imagem daquele suposto rato enorme com as patas rosas e a cara de mau, passando a língua rapidamente a grandes goles em minha lágrima. Sinto nojo daquela lágrima - o pouco que resta de minha humanidade, diga-se - já na garganta seca daquele rato grande e peludo.
O filete de humanidade que lubrifica minha vista agora se transforma em ojeriza presa à cauda fina daquele bicho. Tento, com o nó na garganta e o arrepio no estômago, forçar outra lágrima no vinco dos olhos. É inútil. Solidifico-me de concreto e aço, enquanto vejo o ralo engolir restos ensaboados de minha sujeira junto com aquela lágrima.

sexta-feira, 30 de março de 2007

Penélope 2007

A escritora Lúcia Bettencourt disse-me, em um e-mail, que estamos sempre a viver a Odisséia, nosso caminho é esse, "um retorno ao lar do qual nos afastamos contra a nossa vontade".
Na maioria das vezes, me sinto uma Penélope munida de caneta bic. Com saudades de mim mesma, engano o tempo, enquanto borro minha mão esquerda de tinta azul. Ja escrevi algo sobre a Penélope que existe em mim:

"Anotações elucidativas para um melhor entendimento do nome Penélope

A quem possa interessar: meu nome é Penélope. Mas, eu desejo intimamente que, ao me conhecerem, me perguntem se choro de manhã e não qual é o meu nome. É muito difícil ser Penélope, quando, diante do outro, tenho apenas um nome como forma de apresentação.
Quero me apresentar a vocês com minhas lágrimas, meus sonhos, meus delírios, minhas risadas estranhas, e não apenas com meu nome. Menos com minha profissão, cor ou estado civil. Sou muito mais do que um formulário de banco. Posso rir, chorar, pensar, posso sentir por meus poros a Vida que se deságua em mim.
Tenho muito mais a oferecer do que simples fórmulas prontas de felicidade. Sei que não gostam de elucubrações quando urge uma ação em um mundo que se movimenta. No entanto, meu pensamento se movimenta. Não basta?
Eu nasci no dia primeiro de um abril qualquer. Assim, procuro me manter viva, sabendo que em cada dia primeiro de cada abril, doze pedaços de mim morrem aos poucos nos outros ou em mim mesma. Nasço de novo a cada primeiro de abril, viva, pulsante, intumescida de existência.
Posso me reinventar a cada dia primeiro de abril. Posso ser alguém mais do que uma mulher de vinte, trinta, quarenta, cinqüenta anos. Pelos dias que caminham sob meus pés, posso ser também todas as mulheres de todas as idades.
Sou criança, adolescente, mulher, jovem, velha. Gorda, magra, feia, bonita. Sou uma mentirosa, por excelência, assim determinou meu aniversário. Talvez, por isso seja intumescida de existência. Avultada com meus capitosos anos.
Quem sabe, um dia, paro de sonhar. Porém, enquanto o mar não seca, vivo. É este o pacto. Viver até que o mar se seque. Até lá, continuo sonhando. Meu médico me recomendou que sonhasse para que não morresse de infarto: uma dose cavalar de sonho por dia, sonhe sem moderação!
Enquanto sonho, esqueço quem sou. Como Prometeu, acorrentaram-me a esta vida que disseram ser minha, ao passo que o dia-a-dia devora meu fígado. Contudo, eles não sabem que, como Prometeu, posso recriar outro fígado, enquanto sonho.
Com a veracidade de uma mentirosa que não sabe o que é, eu sonho. Ao menos, sonho. Ao mais, sonho. Sonho para não ser. Sonho para ser. Sonho para ser o não ser. Sou, simplesmente sou. Até que sonho. Sou, complexamente, sou. E, mais. Posso criar outros fígados. Enquanto sonho."

É isto.