"Querida, você tem um coração na garganta"
Minha avó

quinta-feira, 26 de abril de 2007

O Fim

"Os caixões norte-americanos são melhores."
Marcelino Freire, conto The End In: Angu de Sangue, p. 119*

*Repare no número da página. Alguma semelhança com 11/9, segundo constatou um leitor de Marcelino Freire? E o livro foi publicado pela primeira vez em 2000!!! Um visionário? Acho que Marcelino é meio bruxo, isso sim!

quarta-feira, 25 de abril de 2007

TRILHAS DEGLUTIDAS

Acerto o movimento dos braços com as pernas em sincronia com meu olhar gravemente determinado. Como que sem lógica, procuro adequar-me abruptamente ao andar simétrico de dois pés chatos. Caminhar é meu secreto contato com o passado pisado destas ruas.

The Volcano Lover

"She experiences pain, not the pain (more precisely, displeasure) of a bad odor, for she knows nothing of good or bad, cannot afford to make this luxurious distinction (every odor is good, because any odor is better than no odor, oblivion), but the pain of loss. "

Susan Sontag

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Quando os nossos corpos se separaram

quando os nossos corpos se separaram olhámo-nos quase a desejar ser felizes.
vesti-me devagar, mas o corpo a ser ridículo. disse espero que encontres um homem
que te ame, e ambos baixámos o olhar por sabermos que esse homem não existe.
despedimo-nos. tu ficaste para sempre deitada na cama e nua, eu saí para sempre
na noite. olhámo-nos pela última vez e despedimo-nos sem sequer nos conhecermos.*

_josé luís peixoto

*O grupo português A Naifa musicou este poema. O link para o site de A Naifa está na minha lista de links, vale a pena dar uma conferida.

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Sou cidadã aprumada, meu bem. Atravesso sempre na faixa, escovo meus dentes após as refeições, pago minhas contas, tomo todos meus remédios pontualmente, ah, e, nunca me esqueço de, pelo menos uma vez por dia, molhar minha garganta com uma dose caprichada de loucura.

ELES QUEBRAM O MUNDO

Eles quebram o mundo Em pedacinhos Eles quebram o mundo A marteladas Para mim não faz diferença Não faz diferença alguma Ainda me sobra muito Ainda sobra muito Basta que eu ame Uma pena azul Uma trilha de areia Uma ave assustada Basta que eu ame Um ramo frágil de ervaUma gota de orvalho Um grilo do campo Eles podem quebrar o mundo Em pedacinhos Ainda me sobra muitoTerei sempre um pouco de ar Um filete de vida Uma nesga de luz no olhar E o vento nas urtigas E mesmo se, mesmo Se me prenderemAinda me sobra muitoAinda sobra muito Basta que eu ame Esta pedra corroída Estes ganchos de ferro Onde um pouco de sangue se demora Eu amo, eu amo A madeira gasta da minha cama O estrado e o colchão de palha A poeira do sol Amo o postigo que se abre Os homens que entraram Que avançam, que me levam A reencontrar a vida do mundo A reencontrar a cor Amo este par de altas traves Esta lâmina triangular Estes senhores vestidos de preto É minha festa e me orgulho Eu amo, eu amo Este cesto cheio de farelo Onde vou pousar a cabeça Oh, eu amo deveras Basta que eu ame Um raminho de erva azul Uma gota de orvalho Um amor de ave assustada Eles quebram o mundo
Com seus maciços martelos Ainda me sobra muito Ainda sobra muito, meu coração.

Boris Vian* Tradução: Ruy Proença

*Esta é outra faceta não tão conhecida (ao menos para mim, hahaha) do escritor Boris Vian (A Espuma dos Dias e Vou Cuspir no seu Túmulo). Ele também foi saxofonista e compositor. Muitas de suas músicas foram regravadas sob a linda voz da cantora brasileira Letícia Coura (do Teatro Oficina).

domingo, 15 de abril de 2007

SINAL DE VIDA

Manhã violenta, além de um sonho como garantia. Da cortina, uma nesga de sol acorda meu à toa adormecido coração. Sob o amarelo latente da aurora, entendo. Morosamente, abro os olhos, sem que assim o deseje. Circulo pela casa ainda nua de sono. Olho pela janela, o mundo pulsa. De olhos fechados, abro a boca, na esperança de que pela garganta se ouça o grito, capaz de ressuscitar cada sonolento instante desta manhã. A cidade dorme. Uma única frase se ouve no silêncio da alvorada: “...estou viva!!!!!!”

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Hoje

Dia do beijo....

quinta-feira, 12 de abril de 2007

COM A MÃO CHEIA DE HORAS

"COM A MÃO CHEIA DE HORAS, assim tu me
[vieste - e eu disse:
o teu cabelo não é castanho.
Fácil o puseste na balança da dor: era bem
[mais pesado que eu...
Eles chegam de navio e o carregam, eles põem
[o teu cabelo à venda nos mercados
[do prazer -
Tu me sorris bem lá no fundo, e eu choro para
[ti da concha leve da balança.
Choro: o teu cabelo não é castanho, eles
[oferendam essa água do mar, e tu lhes
[dás os cachos dos cabelos...
Murmuras: já preenchem o mundo comigo e,
[para ti, eu sou apenas uma
[passagem no peito:
Dizes: assume a folhagem dos anos - já é
[tempo de te aproximares e me beijares!
A folhagem dos anos é castanha, mas o teu
[cabelo não"

Paul Celan Tradução: Flávio R. Kothe

OUTONO

Três coisas boas do mês de abril:
!meu aniversário
@cheiro cinza das folhas
#ventinho gostoso de outono

terça-feira, 10 de abril de 2007

Dicionário fragmentado

Arranha-céu S.m. Urb. Impressão imediata quando, à sombra de um edifício, ergo meus olhos ao rasgado céu de São Paulo

Anoitece [De anoitecer + o pl. de tristeza] V.i. À noite, a noite tece, tece noite

Água-oxigenada S.f. Inf. Água oxigena o nada, quando submerso, meu corpo (copo) vazio.

Anotações elucidativas para um melhor entendimento do verbete SAUDADE

O pronome “nós” enfrenta a solidão urbana na cidade de São Paulo. Já é prístina sua conjugação correta, que se confunde com os solilóquios matinais do “eu” e com a amorfa gente evocada a cada “nós” anoitecido.

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Embriagai-vos







"O mundo não merece nossa lucidez" Caio Fernando Abreu

quarta-feira, 4 de abril de 2007

terça-feira, 3 de abril de 2007

Mais Penélope

Pela janela, Penélope percorre os dias, a prolongar as horas entre um cigarro e outro, como se lembrar-se de algo ou de alguém fosse a vida, fumável, enquanto nos acomodamos placidamente na cadeira. Todos os dias, pela janela, quando sobra tempo para pensar no pouco tempo que lhe resta para ser “feliz”, ela se arrasta aos ponteiros com o cinzeiro sob seus dedos longos e amarelos. Pela janela, constata a impossibilidade de ser “feliz”. Não se casaria novamente, suas manias, já amadurecidas e bem cuidadas pelos anos solitários, afastaram de si qualquer hipótese de uma nova vida a dois. Agora seria apenas ela e suas bolsas de crochê, além de uma enorme saudade do futuro que inventara um dia...*

"IDADE

É o tempo,
Que lhe corta os dias
O mesmo
Que me conta os casos,

Dos quandos,
Que eu não mais ouvia,
Aos comos
Sem porquês dos atos.

É dele
Meu desenho à pele,
O mapa pelo qual escapo
Da velha juventude eterna.

Ao tempo
Meu melhor bom dia.
Sem medo do que o sol me tira
Me farto do que a luz me soma."

Andrea de Barros

domingo, 1 de abril de 2007

ENVIE MEU DICIONÁRIO

"acordo logo durmo

durmo logo acordo

nem memórias nem diários

comigo mesmo diálogo

daqui até ali

dali até logo"

Paulo Leminski

Pelo ralo

Que desperdício. Uma lágrima, tão salgadamente minha, escoa ralo abaixo enganada às gotas do chuveiro. Procuro intensamente por outra tão especial, mas o vapor do banho embaça minha visão do avesso.
Estremeço ao imaginar que algum pedaço de meus dias chorados irá saciar a sede de um rato de esgoto. Um frio de asco acomete meus pensamentos pela imagem daquele suposto rato enorme com as patas rosas e a cara de mau, passando a língua rapidamente a grandes goles em minha lágrima. Sinto nojo daquela lágrima - o pouco que resta de minha humanidade, diga-se - já na garganta seca daquele rato grande e peludo.
O filete de humanidade que lubrifica minha vista agora se transforma em ojeriza presa à cauda fina daquele bicho. Tento, com o nó na garganta e o arrepio no estômago, forçar outra lágrima no vinco dos olhos. É inútil. Solidifico-me de concreto e aço, enquanto vejo o ralo engolir restos ensaboados de minha sujeira junto com aquela lágrima.