"Querida, você tem um coração na garganta"
Minha avó

terça-feira, 31 de julho de 2012

Berthold Zilly na Revista Metáfora

 Parte da minha deliciosa conversa com Berthold Zilly foi publicada na Revista Metáfora deste mês. Pelo fato de meu texto ter sido bastante modificado, publico neste blog a entrevista antes de editada. Optei por manter a regência verbal "ter que", pois penso que desta forma o escrito se aproxima mais do dito. (Como no meio do caminho "tinha" uma pedra e não "havia" uma pedra!)     


A entrevista editada pela revista estará disponível no link a seguir:

http://revistametafora.com.br/2012/07/12/embaixador-da-literatura-brasileira/



ENFIM, EIS A ENTREVISTA TAL QUAL A REDIGI:

 
Temporada de pesca da tainha. Os pescadores passam a integrar a paisagem que se descortina do quintal da casa do professor e tradutor alemão Berthold Zilly, em Florianópolis. “Esta vista me ganhou.”, diz Zilly com uma voz firme e os olhos apontados para o imenso que a praia da Barra da Lagoa guarda. Com um português perfeito, quase sem sotaque, o tradutor explica o motivo pelo qual escolhera a casa e a cidade onde mora atualmente. Sua vinda ao Brasil é decorrente do convite feito pela Universidade Federal de Santa Catarina para lecionar como professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Tradução, que, segundo ele, é o principal centro de estudos de tradução da América Latina.

Doutor em Literaturas Neolatinas e Alemã pela Universidade Livre de Berlim, Berthold Zilly é professor aposentado pela mesma universidade e especialista nas áreas de língua portuguesa, literatura brasileira, literatura hispano-americana e tradução. Seu segundo ofício, como tradutor, já lhe rendeu alguns prêmios, como o prêmio Christoph-Martin-Wieland pela tradução de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Zilly também já traduziu para o alemão outras importantes e difíceis obras: Triste Fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto, Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, Memorial de Aires, de Machado de Assis e Civilización y Barbarie, de Domingo Sarmiento; traduções que exibe das suas duas estantes de livros, enquanto repete com modéstia: “sou um tradutor bissexto”.

Para ele, todo tradutor é melancólico e idealista, sobretudo ao se deparar com sua empreitada quase “quixotesca”, haja vista a impossibilidade de se fixar todas as qualidades e propriedades de um texto, constituinte de uma obra aberta, cujos significados são também modificados com a história, com os leitores e, ainda, com a língua. Não por acaso, Zilly retoma o olhar de quando mirava a praia da Barra da Lagoa, ao falar sobre seu novo desafio: traduzir Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, para o alemão, pela editora Hansel. Talvez, sua ciência sobre a grandiosidade do ofício justifique a humildade com que se considera um tradutor bissexto, ou quando qualifica seu português como “mais ou menos bom.” Na conversa em sua casa, em entrevista à Revista Metáfora, todavia, Zilly prova exatamente o contrário. Além de um grande tradutor, domina muito bem a língua portuguesa, da qual se vale enquanto explana aspectos bastante interessantes da tradução, no decorrer de uma deliciosa e extensa conversa servida com pães de queijo, tortas e frutas — estes providenciados delicada e prontamente por sua esposa argentina, Claudia Silveyra D’Avila.  

Tanto nos posfácios das traduções dos livros Os Sertões e Triste Fim de Policarpo Quaresma, quanto em outros artigos seus (sobre Lavoura Arcaica, Os Sertões, entre outros) nota-se uma grande pesquisa e profundo conhecimento não apenas da obra traduzida como do autor e do contexto histórico. Como é seu envolvimento com o autor e com a obra, antes de esta ser traduzida?

Sua pergunta é crucial. Poderíamos formulá-la de outra maneira também: qual é a relação entre tradução e análise literária? Eu diria que as duas atividades se complementam e são de certa forma duas faces da mesma medalha. Para poder traduzir, eu tenho que analisar o texto o mais completamente possível. E, por outro lado, para fazer uma boa análise literária, envolvendo tanto a forma linguística do texto como seus significados profundos eu tenho que traduzi-lo. Quando já se trata de uma tradução, tenho que estudá-la. Creio que a tradução, além de jogar luz sobre o texto, é também uma complementação da análise literária e vice-versa. O tradutor é um crítico literário, porém, um crítico literário sui generis, pois não apenas faz uma análise literária implícita ou explícita — geralmente, uma análise implícita, pois não tem interesse nem tempo pra redigir toda análise — mas também dá ao resultado dessa análise uma nova forma linguística, poética e estética em outro idioma. No meu caso, sou um tradutor bissexto, traduzi uma meia dúzia de livros, alguns artigos, alguns poemas soltos, alguns outros  textos, filmes... mas muito pouco, no fundo. Quantitativamente muito pouco. O núcleo do meu trabalho é analisar e interpretar textos em línguas estrangeira (em espanhol e português basicamente) do ponto de vista do alemão. E vim a ser tradutor pela primeira vez muito tarde, com quase 50 anos, com o livro de Euclides da Cunha. O  texto de Os Sertões me fascinava — creio que já falei isso em outra entrevista — fascinava-me, mas eu não o entendia e se opunha à compreensão espontânea. Para torná-lo acessível para mim mesmo eu tive que traduzi-lo. Por quê? Porque quando o texto está acessível à minha língua materna eu tenho uma relação mais íntima com ele. Creio que eu o entendo melhor quando me aproprio dele. Ele fica mais perto do meu coração. E para realizar esse desejo, tenho que fazer uma análise muito mais profunda do que de um crítico literário, pois o crítico literário, em geral, examina o texto a partir de certos interesses cognitvos, enfoques e perspectivas. Em geral, é uma abordagem dedutiva, ele tem algumas perguntas que dirige ao texto e o texto as responde. O tradutor, claro, também faz isso, pois ninguém pode fazer de conta que não tem nenhuma ideia sobre o que é um texto, ou o que deveria ser, ou mesmo qual o interesse que temos em relação a este texto. Mas, além disso, o tradutor tem que estar aberto a qualquer qualidade do texto, por menor que seja, e, independentemente de qualquer opinião que tenha sobre literatura, deve estar aberto até para qualidades que nunca havia presumido. Deve tentar uma análise totalmente completa. Sua abordagem é primeiramente indutiva, o tradutor segue elemento por elemento, o andamento do texto. Faz uma análise microscópica estrutural do texto, de cada parágrafo, da estrutura do parágrafo e também da estrutura de um livro como um todo, ou seja, deve juntar macroanálise com microanálise. Claro que, para um tradutor experiente, é um processo mais ou menos inconsciente, intuitivo, em grande parte porque, se não fosse intuitivo ele levaria tempo demais. Pode-se demorar duas horas para analisar uma frase em todas as suas nuances e camadas significativas, alusões em relação a outros textos, relação intertextual, alusões em relação à realidade extraliterária — o que é muito importante, a análise do contexto histórico, social, político etc. O tradutor tem que ser enciclopedista, o que vem ao encontro da minha atitude intelectual em relação à literatura e ao mundo, eu sou um pouco enciclopédico. Eu não sabia o que queria ser em termos profissionais, eu queria fazer tudo, saber tudo e me parece que Guimarães Rosa era assim também. Ele tinha uma curiosidade fantástica por tudo, Ciências Naturais, História, Arqueologia Botânica, Lingüística. Além disso, viajava bastante para Europa, América Latina e principalmente, no Brasil, para o sertão mineiro e a outros sertões. Um bom tradutor precisa ter tudo isso, deve ser um homem curioso e um viajante também. Em um dos seus primeiros textos, Guimarães Rosa o assinou com um pseudônimo: Viator, viajante em latim, o que é interessante também porque latim é uma língua internacional ou transnacional. Creio que ele poderia ter sido um bom tradutor, aliás, ele foi tradutor, já traduziu um pequeno livro para a Revista Seleções Reader’s Digest. Ou seja, ele sabia o que era traduzir.

E como era a relação de Guimarães Rosa com os tradutores?

Bom, esse é um item muito importante e muito interessante. Guimarães Rosa sabia o que era traduzir, portanto estava muito interessado em acompanhar os trabalhos dos tradutores. Ele era um escritor intuitivo, quase que místico, tinha uma relação mística com a linguagem, e, ao mesmo tempo, era muito racional, muito analítico. Ele sabia exatamente o que estava fazendo assim como sabia ou tinha uma ideia daquilo que deveria ser uma boa tradução de seus textos. Essas ideias estão mais claras nas correspondências que ele manteve com seus tradutores. Infelizmente, apenas a correspondência com dois tradutores foi publicada. Uma das publicações, inclusive, é anterior a sua morte em 1967: a correspondência com o tradutor italiano Edoardo Bizzari. A correspondência com o tradutor alemão, Curt Meyer-Clason foi publicada após a morte do escritor. E devo confessar que não li totalmente esses dois livros, mas já os li em parte e constatei que ele realmente tinha uma noção muito clara do caráter e das propriedades do seu estilo: um novo regionalismo, palavras compostas de elementos regionais, arcaicos ou estrangeiros (ele era muito mineiro, muito brasileiro, mas muito transnacional e muito translingual também). Guimarães Rosa fez uma espécie de mestiçagem linguística, extraiu elementos de várias línguas, inclusive do alemão. Sua grande preocupação era devolver às palavras e aos sintagmas a sua beleza, sua sugestividade, sua magia, toda riqueza dos seus significados. O que o aproxima dos românticos, inclusive os românticos alemães, para quem as palavras e os sintagmas, frases, digamos, não são apenas signos de uma realidade extralinguistica, mas constituem uma realidade sui generis, aliás, esse é o significado de poesia: poiesis significa geração, no sentido de gerar, de produzir, de criar. Esta é uma ideia romântica também. Há um pequeno poema de Eichendorff : Schläft ein Lied in Allen Dingen/ die da träumen fort und fort/ und die Welt hebt an zu singen / Triffst du nur das Zauberwort”que é mais ou menos “As coisas vivem sonhando e sonhando e o mundo começa a cantar se você acertar na palavra mágica” Pois Guimarães Rosa queria criar um estilo que tivesse a máxima distância da linguagem de todos os dias, da língua padrão, também da linguagem de outros escritores. Isso foi uma preocupação que tornou o estilo dele de acesso difícil, também enigmático e hermético. Ele queria ainda que os tradutores produzissem uma prosa poética tão distante da linguagem padrão nos seus idiomas, quanto ele o fez no idioma português. E é preciso dizer que nenhum dos tradutores tentou plenamente. Tentaram até certo ponto — eu preciso ser modesto e humilde, estou começando como tradutor, estou começando como crítico literário da obra de Guimarães Rosa e como crítico e como leitor das outras traduções — mas pelo que eu li até agora das outras traduções, há poucos neologismos, por exemplo, as palavras que eles usam são palavras que encontramos em dicionários, em alemão, em italiano, em inglês, em francês, em holandês. Eu leio todas essas traduções, não leio palavra por palavra, mas sempre dou uma olhada, tanto para o holandês, quanto para o italiano, o francês, as duas para o espanhol e para o inglês também. Os de línguas românicas  conseguem seguir com mais facilidade a sintaxe, a colocação e a sequência das palavras alcançando uma maior fidelidade, mas o inglês, o alemão e o holandês têm mais dificuldade, naturalmente. Alguns tentam pelo menos dar uma ideia da sonoridade. Nesse sentido, as traduções realmente seguem mais ou menos as recomendações estilísticas do autor. Em geral, os tradutores procuraram sim reconfigurar essas figuras sonoras, recursos ou figuras estilísticas sonoras, mas não a raridade de palavras, os novos prefixos, novos sufixos e provérbios que ele inventou, a ressemantização de palavras — às vezes há uma palavra realmente corriqueira mas usada com o sentido inusitado — em geral os tradutores hesitam em segui-la. As línguas românicas, como já disse, têm mais facilidade, é por isso que as traduções para o espanhol, para o italiano e também para o francês, nesse sentido, são as mais fiéis. Já para o alemão e para o holandês é muito mais complicado. E, infelizmente, o tradutor para o alemão se afasta mais do que todos os colegas do ideal estilístico de Guimarães Rosa.

Por que a tradução alemã de Curt Meyer-Classon se afasta mais do ideal estilístico de Guimarães Rosa?

Porque quase não há mais distância entre o estilo dele e aquilo que se esperaria, o que eu chamaria de qualidade diferencial estilística, que é a qualidade de determinado estilo em relação ao estilo que o leitor esperaria em tal época, tal gênero literário e tal temática Essa qualidade diferencial é enorme em Guimarães Rosa, mas ela é bem menor nas traduções, e é menor ainda na tradução alemã, embora esta seja ainda bem legível, muito bonita e muito bem sucedida à primeira vista. Contudo, quando você faz o teste pela Internet — aliás, grande ferramenta que o tradutor de hoje tem ao seu favor — e digita no Google  trechos com quatro ou cinco palavras utilizados pelo escritor, verifica que  enquanto no original esses trechos apenas são encontrados em sites relacionados ao Guimarães Rosa, na tradução, aparecem 10 mil, 100 mil, 1 milhão de ocorrências. Nota-se que não existe mais qualidade de diferencial, logo, algo está errado. O meu desejo é conseguir que a combinação de palavras traduzidas em Grande Sertão quando procurada na Internet também não seja encontrada em nenhum site, a não ser na própria obra de Guimarães Rosa. Isso é o ideal e não é realizável plenamente, mas como já disse no início de nossa conversa, quando comentei sobre a inevitável melancolia do tradutor: você sabe que você não consegue, mas tem que tentar. Eu não vou traduzir, nenhum tradutor pode traduzir o estilo tão distante do estilo padrão na língua dele ou tão estranho, com tanto efeito de estranhamento no leitor ou não pode ferir tanto o horizonte de expectativa ou de espera quanto o fez Guimarães Rosa, mas tenho que tentar. E deve haver alguma distância sim entre o estilo dele, o estilo do texto de chegada, e o estilo que o leitor culto esperaria. Mas, por outro lado, não posso produzir um estilo tão raro porque aí o leitor ficaria talvez aborrecido, se sentiria rejeitado pelo texto. O texto tem que ter acessibilidade um pouco mais fácil do que para o leitor brasileiro, porque o leitor brasileiro não se sente rejeitado, pois continuará a leitura, apesar da dificuldade, por se tratar de um autor canonizado, de grande prestígio.

Sua afirmação vem ao encontro de uma questão minha: no posfácio da tradução de Os Sertões de Euclides da Cunha, você afirma reproduzir na medida do possível a singularidade estilística do original e ao mesmo tempo tentar tornar o texto consideravelmente mais legível. Gostaria que comentasse os obstáculos e alternativas que encontrou na tradução de uma obra hermética e difícil como a de Euclides, tradução, diga-se, laureada pelos Prêmios Scathed e Wieland. 

Eu sou muito egoísta quando penso que traduzo, em primeiro lugar, para mim mesmo. Ao me apropriar de um texto, eu o faço para leitores, outros leitores da minha língua, da língua de chegada. Não confio 100 % em mim mesmo. Em todas as minhas traduções, tive o hábito de ler trechos para amigos que não soubessem nada do Brasil — mesmo se soubessem português, não tinham lido o trecho original — para ver como eles o entenderiam. Porque a compreensibilidade para mim também é uma meta. Eu tenho que combinar duas metas quase excludentes: dar uma ideia da singularidade e da dificuldade do estilo original, além da qualidade diferencial deste estilo e ao mesmo tempo eu tenho que facilitar a compreensão. E não há uma solução ideal. Durante todo livro, tenho que negociar cada frase, cada palavra. Umberto Eco, em Quase a mesma coisa: experiências de tradução, nos fala que a tradução deve ser legível e compreensível e que o conceito de negociar é muito importante. Eu tenho que negociar comigo e imaginariamente com o autor, com o texto e com os futuros leitores. Tenho que chegar a uma solução aceitável para todos: para mim, para o autor, para o narrador imaginário do texto e para os leitores que não conheço ainda, mas que posso imaginar. Eu sei mais ou menos que tipo de leitor provavelmente lerá o livro um dia. Mas não há receita. Acredito muito também na audição o texto. Em Euclides da Cunha eu dei muita atenção à audibilidade, o livro tem que ser legível e audível. A minha teoria é de que um texto, mesmo quando lido silenciosamente,  (diferentemente da Idade Média ou da Antiguidade quando as pessoas liam em voz alta) é ouvido.  Para mim, uma boa audibilidade do estilo constitui 90% daquilo que é um bom estilo. Um estilo que soa bem é considerado um bom estilo. Uma pessoa que não sabe identificar os textos como bons ou ruins, os lê em voz alta e constata qual soa melhor. Para testar a qualidade do texto, eu o leio em voz alta e às vezes o leio alto para outras pessoas ouvirem e me dizerem se estão compreendendo ou não. A leitura em voz alta tem duas funções: avaliar a qualidade sonora, o ritmo e a sequência dos sons e das sílabas e também testar a compreensibilidade do texto.


Ainda sobre Os Sertões no artigo Um depoimento brasileiro para a História Universal- Traduzibilidade e atualidade de Euclides da Cunha, você afirma que além do público letrado do litoral, o autor tinha em mente o público europeu, da época e da posteridade, de modo que Os Sertões é daqueles livros que pedem para ser traduzidos e que para desdobrar todo o seu riquíssmo potencial de significados precisam de recriação em outros idiomas. Este também foi um dos motivos que o impeliu a traduzir a obra, ainda sem uma editora em vista?

Sim, também. Eu acho que qualquer bom livro pede para ser traduzido, porque, graças a Deus, um livro escrito para determinada comunidade linguística, para determinada leitura de determinada cultura, tem um potencial de significados que ultrapassa a língua, a cultura, a região, o país, a nação e a época na qual e para a qual foi criado. Isso é quase um milagre, é algo fantástico. Jorge Amado escreve o livro Capitães de Areia para o público daquela época, fim dos anos trinta se não me engano, um livro cheio de compreensão, de compaixão, com os meninos de rua, como se diria hoje, um livro de poesia, mas, ao mesmo tempo, é um livro de protesto social também, um livro de crítica e até hoje é best seller no mundo inteiro. Isso é fantástico, um livro de uma época, de um público e de uma nação, mas implicitamente escrito para o mundo porque tem camadas de significados que vão muito além do idioma e da cultura para os quais foi escrito. No caso de Euclides, há um fato curioso, Euclides chegou à Bahia no início de agosto de 1897 para depois seguir para Canudos a assistir à Guerra de Canudos como jornalista, como correspondente de guerra e também como uma espécie de assessor do Ministro de Guerra. Uma situação bem complicada e quase contraditória: ele era membro do exército e ao mesmo tempo jornalista, que deveria relatar objetivamente e de maneira crítica esse exército, uma situação bastante delicada. Mal Euclides chegou à Bahia, conheceu um intelectual franco-brasileiro, para quem encomendou, pediu que traduzisse seu futuro livro sobre a Guerra de Canudos. Antes de escrever a primeira linha de Os Sertões, ele já havia cuidado da questão da sua tradução para o francês! (que era a língua franca da época, como hoje seria o inglês)

Como você entrou em contato pela primeira vez com a literatura brasileira?

Eu vim ao Brasil pela primeira vez em 1968, no meu tempo de estudante. Era um interesse tríplice, talvez um interesse político. Foi uma época bem dramática no mundo com movimentos intelectuais e culturais nas universidades. Movimentos de revolta, de inovação, de utopias, de crítica aos poderes estabelecidos, ao establishment interno, e no plano internacional também, crítica ao imperialismo, além de um certo engajamento ético, eu diria, político, uma certa indignação com a miséria do mundo. Vemos isso pouco ou bastante na obra e na vida de Pierre Bourdieu, o sociólogo francês, La Misère du Monde. Protestávamos também contra ditaduras, no Brasil houve o golpe militar em 1964, no Paraguai antes, nos anos 50, e havia outras ditaduras, havia ainda a ditadura em Portugal, de Salazar, na Espanha, a ditadura de Franco, que só morreu em 1975/76. Ou seja, o mundo estava pleno de ditaduras, principalmente o mundo ibero-americano. Esse foi um dos motivos pela minha vinda ao Brasil. O outro foi o interesse pela literatura e pelos filmes. Eu tinha assistido ao Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, estava começando a ler literatura Latino-Americana. Estudava espanhol. Antes do filme, eu tinha lido também Josué de Castro, Gilberto Freyre. Já o terceiro motivo envolve fatores mais pessoais, como dizem os franceses, cherchez la femme. Eu tinha uma namorada brasileira, que conheci na França. Vim ao Brasil para visitá-la. Como ela também era do Nordeste, passei a me interessar muito pela região. Dez anos mais tarde, quando já havia terminado o doutorado, voltei ao Brasil como professor visitante da Universidade Federal do Ceará. Comecei a ler Os Sertões, em 1978, quando já tinha noções e um certo fascínio pelo sertão. Aliás, sempre gostei do sertão, desde 1968, quando o atravessei pela primeira vez, de ônibus e de trem Ainda havia trens naquela época.

Você chegou a conhecer Canudos e, consequentemente, São José do Rio Pardo? Esse conhecimento geográfico também é importante para a tradução?

Naquela época não, mas posteriormente sim. Estivemos juntos em Canudos, Cláudia e eu. Estive também em São José do Rio Pardo. Sim, o conhecimento geográfico é importante para a tradução, mas quando leio um livro, principalmente quando o traduzo, tenho que imaginar como é e como foi o espaço, digamos, o espaço ficcional, o espaço evocado pelo livro. Como é a relação entre o espaço imaginado e o espaço real. Porque aí posso organizar melhor a minha imaginação como leitor. Quando traduzo, uma das primeiras coisas que faço é comprar mapas, preciso de mapas. Comprei vários mapas do sertão de Canudos para me organizar, mapas históricos e atuais. Depois busco informações complementares: história, geografia, botânica. Isso eu faço com todos os livros que traduzo. Acho que qualquer tradutor faz isso, não é? Até certo ponto, nos sentimos um segundo autor, temos quase todas as informações que um autor tinha e reescrevemos o livro. Mas, para poder fazer isso, temos que saber quase tudo aquilo que o autor sabia. Temos que saber até mais do que o autor. Temos que, às vezes, corrigi-lo, pois às vezes se engana. E temos ainda que conhecer a história da recepção do livro. Você citou São José do Rio Pardo, é um lugar que cultiva a memória de Os Sertões, a vida de Euclides. É importante saber qual é o papel de Euclides na cultura brasileira, quais são as principais linhas de interpretação, qual é a fortuna crítica dele, e isso entra na leitura dos brasileiros e também na minha leitura. Não que eu exatamente reproduza essa leitura. Mas essa leitura entra na minha tradução, no paratexto também. Porque penso que o tradutor é autor do paratexto, que faz parte da tradução, pois leva o livro para outra cultura e o torna compreensível para leitores que não conhecem muito bem a cultura de partida. Grande parte daquilo que não posso inserir na própria tradução eu acrescento no paratexto. Procuro inserir, de alguma maneira, essa cultura nessas obras de chegada. Escrevi vários textos sobre Os Sertões na Alemanha., não somente o posfácio. Há textos em que eu comparo a Guerra de Canudos com as guerras camponesas, por exemplo, que foram guerras religiosas e guerras sociais. Guerras sociais, mas na roupagem de guerras religiosas, muito semelhante à guerra de Canudos, que, para os canudenses, era uma guerra religiosa, do anticristo contra cristo ou do diabo contra deus.
                                               
O seu ofício como tradutor modificou, de alguma forma, seu olhar como leitor?                       

Sim, eu fico mais atento aos detalhes. Antigamente, quando eu lia, tinha uma leitura mais dedutiva. Tinha tal ou tais interesses cognitivos, que se verificavam no texto. Exagerando um pouco, procuramos a confirmação daquilo que achávamos que já sabíamos antes. Como tradutor, pratico uma leitura indutiva, mais aberta, eu faço de conta que não sei de nada e não penso nada sobre o texto. Deixo o texto exercer seus efeitos sobre mim e assim o examino. Quando tenho um elemento que não faz efeito nenhum, tudo bem, eu não quero ignorá-lo. Vou examiná-lo e entender porque o autor escolheu tal e tal palavra a partir de um arsenal de palavras mais ou menos sinônimas, ou sintagmas mais ou menos viáveis. Ou seja, eu procuro entrar na cabeça do autor, o autor quer dizer isso ou aquilo, ele tem um elemento semântico, poderia ter dito isso assim ou assado. “Tiros que o senhor ouviu não foram de briga de homem não” é a primeira frase de Grande Sertão. Tiros, por que tiros? Por que não uns tiros? Por que não os tiros? Por que não aqueles tiros? Por que não aquele estampido? (há tradutor que traduz este tiro como estampido, ou estalo. Mas o narrador diz tiro, tiro é de fuzil, ou de pistola, estampido pode ser qualquer coisa, que não necessariamente de uma arma de fogo). E “que o senhor ouviu”, ele poderia dizer que você ouviu. Que a vossa senhoria ouviu. Ou escutou. Ou tem ouvido, tinha ouvido, ou ouvira. “não foi de briga de homem não” por que o não no final? Poderia ser “não foi de briga de homem”..

Mas isso torna a leitura mais demorada e também mais prazerosa, não?

Claro. O texto aparece diante dos meus olhos e ouvidos como resultado de um processo de decisão a partir de um potencial muito rico. Eu quase vejo o autor hesitar, eu reescrevo o texto de certa forma. Como aquele crítico francês no conto de Borges, Pierre Menart, autor del Quijote, que reescreve Dom Quixote de Cervantes, estuda a história do cristianismo, e o resultado é aparentemente o mesmo. Mas ele entende o texto muito mais profundamente do que se fizesse uma simples leitura. Porque pensa o que o autor poderia ter escrito e não escreveu. Eu entendo o texto como resultado de milhares de processos de decisões entre milhões de possibilidades, no eixo paradigmático. Como antigamente, quando o tipógrafo tinha os tipos e escolhia tal e tal tipo a resultarem em um texto. Desta forma, eu entendo a necessidade de o texto ser tal qual ele é.
 
Errata: (duas correções)
o nome da editora pela qual Berthold Zilly traduzirá Grande Sertão: Veredas é Hanser e não Hansel.
o título do conto de Borges é Pierre Menard, autor del Quijote e não Pierre Menart, autor del Quijote

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O TAPETE


Descemos a escada, decididos. O horário ainda não era aquele, mas roubamos algumas horas de travesseiro e cobertor para cumprirmos o que havia tanto tempo planejáramos: descer a escada, decididos.

            A cada degrau, o tapete ao pé do balaústre se ampliava sob nosso reduzido  foco de visão, até que a peça não mais cabia em nossos olhos, restringindo nosso mundo às formas simétricas de um caleidoscópio.

            E, assim, o plano tão minuciosamente estudado na noite anterior pelo Sr. A. Almeida derrocou-se ante mais um tombo que todos levamos. Ferido pela única parte do corpo até então intacta, o nariz, A Almeida nos lembrou da obrigação: seguirmos imediatamente ao trabalho tal qual o tapete nos deixara, já que o relógio apontava a urgência da partida. Retiramo-nos todos rumo ao ganha-pão-de-cada-dia, menos A. Almeida, preocupado em disfarçar o disforme pedaço de carne vermelha e intumescida que se tornara o nariz.      
            À medida que o rosto se cobria de pó de arroz, A. Almeida deformava ainda mais a face pelos xingamentos que todos conseguimos ouvir já do outro lado da rua. Praguejou o nariz deformado, amaldiçoou o tombo, até, finalmente, alcançar o ápice do nosso mau humor: o tapete. Sim o tapete, responsável por mais um dia de quedas. O tapete violentava dia a dia, aveludada e lentamente, nossa vontade. Todas as manhãs, partes de nosso corpo eram arrombadas pelos mudos losangos do carpete. O tapete, agente dos males, o seu pior.
            Almeida sabia que algo urgia. Talvez uma medida extrema. Aquele não era o dia de ganhar-o-pão-nosso-de-cada-dia. As horas se guardaram para outras urgências. A cada segundo um pouco de nós resvalava. Algo drástico necessitava ser feito. Retornamos todos à casa. Álcool inflamável e um fósforo eram o suficiente para devolver a alegria, e, pela lareira, observamos, vitoriosos, a chama restituir cada pedaço da família A. Almeida.
            Por fim, o tapete era cinzas. Uma felicidade intensa tomou nosso corpo, a nos derreter em lágrimas. Do gosto salgado que nos descia à boca, nos estranhamos pelo sentimento que nos vestia. Assemelhava-se mais à tristeza, a uma dor vazia. Por que estávamos, lá, nós tristes, por Deus? Conseguimos, pois, que não? Deveríamos era rir alto. Bem alto. Dobrar a barriga de tanto rir. Mas, qual o quê! Chorávamos todos. Sem dor pra sentir. Chorávamos baixo. Abafávamos nosso constrangimento.
Sem mais do que, Almeida procurou em alguma tapeçaria aberta, por algum tapete à mostra, igual ao outro em peso e medida. De volta ao lar, Almeida estendeu o tapete na posição exata. Voltamos todos decididos ao ponto inicial da manhã, felizes e agradecidos por ainda termos um tapete onde tropeçar.  

IN: Mind the Gap. São Paulo: Editora Patuá, 2011. (mais informações sobre, no blog: mind the gap between the train and the platform)