A entrevista editada pela revista estará disponível no link a seguir:
http://revistametafora.com.br/2012/07/12/embaixador-da-literatura-brasileira/
Temporada de
pesca da tainha. Os pescadores passam a integrar a paisagem que se descortina do
quintal da casa do professor e tradutor alemão Berthold Zilly, em
Florianópolis. “Esta vista me ganhou.”, diz Zilly com uma voz firme e os olhos
apontados para o imenso que a praia da Barra da Lagoa guarda. Com um português
perfeito, quase sem sotaque, o tradutor explica o motivo pelo qual escolhera a
casa e a cidade onde mora atualmente. Sua vinda ao Brasil é decorrente do
convite feito pela Universidade Federal de Santa Catarina para lecionar como
professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Tradução, que,
segundo ele, é o principal centro de estudos de tradução da América Latina.
Doutor em Literaturas Neolatinas
e Alemã pela Universidade Livre de Berlim, Berthold Zilly é professor
aposentado pela mesma universidade e especialista nas áreas de língua
portuguesa, literatura brasileira, literatura hispano-americana e tradução. Seu
segundo ofício, como tradutor, já lhe rendeu alguns prêmios, como o prêmio
Christoph-Martin-Wieland pela tradução de Os
Sertões, de Euclides da Cunha. Zilly também já traduziu para o alemão
outras importantes e difíceis obras: Triste
Fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto, Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, Memorial de Aires, de Machado de Assis e Civilización y Barbarie, de Domingo Sarmiento; traduções que exibe
das suas duas estantes de livros, enquanto repete com modéstia: “sou um
tradutor bissexto”.
Para ele, todo
tradutor é melancólico e idealista, sobretudo ao se deparar com sua empreitada
quase “quixotesca”, haja vista a impossibilidade de se fixar todas as
qualidades e propriedades de um texto, constituinte de uma obra aberta, cujos
significados são também modificados com a história, com os leitores e, ainda,
com a língua. Não por acaso, Zilly retoma o olhar de quando mirava a praia da
Barra da Lagoa, ao falar sobre seu novo desafio: traduzir Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, para o alemão, pela
editora Hansel. Talvez, sua ciência sobre a grandiosidade do ofício justifique a
humildade com que se considera um tradutor bissexto, ou quando qualifica seu
português como “mais ou menos bom.” Na conversa em sua casa, em entrevista à Revista Metáfora, todavia, Zilly prova
exatamente o contrário. Além de um grande tradutor, domina muito bem a língua
portuguesa, da qual se vale enquanto explana aspectos bastante interessantes da
tradução, no decorrer de uma deliciosa e extensa conversa servida com pães de
queijo, tortas e frutas — estes providenciados delicada e prontamente por sua esposa
argentina, Claudia Silveyra D’Avila.
Tanto nos posfácios das traduções dos livros Os Sertões e Triste Fim de Policarpo Quaresma,
quanto em outros artigos seus (sobre Lavoura
Arcaica, Os Sertões, entre
outros) nota-se uma grande pesquisa e profundo conhecimento não apenas da obra
traduzida como do autor e do contexto histórico. Como é seu envolvimento com o
autor e com a obra, antes de esta ser traduzida?
Sua pergunta é
crucial. Poderíamos formulá-la de outra maneira também: qual é a relação entre
tradução e análise literária? Eu diria que as duas atividades se complementam e
são de certa forma duas faces da mesma medalha. Para poder traduzir, eu tenho
que analisar o texto o mais completamente possível. E, por outro lado, para
fazer uma boa análise literária, envolvendo tanto a forma linguística do texto
como seus significados profundos eu tenho que traduzi-lo. Quando já se trata de
uma tradução, tenho que estudá-la. Creio que a tradução, além de jogar luz
sobre o texto, é também uma complementação da análise literária e vice-versa. O
tradutor é um crítico literário, porém, um crítico literário sui generis, pois não apenas faz uma
análise literária implícita ou explícita — geralmente, uma análise implícita,
pois não tem interesse nem tempo pra redigir toda análise — mas também dá ao
resultado dessa análise uma nova forma linguística, poética e estética em outro
idioma. No meu caso, sou um tradutor bissexto, traduzi uma meia dúzia de
livros, alguns artigos, alguns poemas soltos, alguns outros textos, filmes... mas muito pouco, no fundo.
Quantitativamente muito pouco. O núcleo do meu trabalho é analisar e
interpretar textos em línguas estrangeira (em espanhol e português basicamente)
do ponto de vista do alemão. E vim a ser tradutor pela primeira vez muito
tarde, com quase 50 anos, com o livro de Euclides da Cunha. O texto de Os
Sertões me fascinava — creio que já falei isso em outra entrevista — fascinava-me,
mas eu não o entendia e se opunha à compreensão espontânea. Para torná-lo
acessível para mim mesmo eu tive que traduzi-lo. Por quê? Porque quando o texto
está acessível à minha língua materna eu tenho uma relação mais íntima com ele.
Creio que eu o entendo melhor quando me aproprio dele. Ele fica mais perto do
meu coração. E para realizar esse desejo, tenho que fazer uma análise muito mais
profunda do que de um crítico literário, pois o crítico literário, em geral, examina
o texto a partir de certos interesses cognitvos, enfoques e perspectivas. Em
geral, é uma abordagem dedutiva, ele tem algumas perguntas que dirige ao texto
e o texto as responde. O tradutor, claro, também faz isso, pois ninguém pode
fazer de conta que não tem nenhuma ideia sobre o que é um texto, ou o que
deveria ser, ou mesmo qual o interesse que temos em relação a este texto. Mas,
além disso, o tradutor tem que estar aberto a qualquer qualidade do texto, por
menor que seja, e, independentemente de qualquer opinião que tenha sobre
literatura, deve estar aberto até para qualidades que nunca havia presumido. Deve
tentar uma análise totalmente completa. Sua abordagem é primeiramente indutiva,
o tradutor segue elemento por elemento, o andamento do texto. Faz uma análise
microscópica estrutural do texto, de cada parágrafo, da estrutura do parágrafo e
também da estrutura de um livro como um todo, ou seja, deve juntar macroanálise
com microanálise. Claro que, para um tradutor experiente, é um processo mais ou
menos inconsciente, intuitivo, em grande parte porque, se não fosse intuitivo
ele levaria tempo demais. Pode-se demorar duas horas para analisar uma frase em
todas as suas nuances e camadas significativas, alusões em relação a outros
textos, relação intertextual, alusões em relação à realidade extraliterária — o
que é muito importante, a análise do contexto histórico, social, político etc.
O tradutor tem que ser enciclopedista, o que vem ao encontro da minha atitude
intelectual em relação à literatura e ao mundo, eu sou um pouco enciclopédico.
Eu não sabia o que queria ser em termos profissionais, eu queria fazer tudo,
saber tudo e me parece que Guimarães Rosa era assim também. Ele tinha uma
curiosidade fantástica por tudo, Ciências Naturais, História, Arqueologia
Botânica, Lingüística. Além disso, viajava bastante para Europa, América Latina
e principalmente, no Brasil, para o sertão mineiro e a outros sertões. Um bom
tradutor precisa ter tudo isso, deve ser um homem curioso e um viajante também.
Em um dos seus primeiros textos, Guimarães Rosa o assinou com um pseudônimo: Viator, viajante em latim, o que é
interessante também porque latim é uma língua internacional ou transnacional. Creio
que ele poderia ter sido um bom tradutor, aliás, ele foi tradutor, já traduziu
um pequeno livro para a Revista Seleções
Reader’s Digest. Ou seja, ele sabia o que era traduzir.
E como era a relação de Guimarães Rosa com os
tradutores?
Bom, esse é um
item muito importante e muito interessante. Guimarães Rosa sabia o que era
traduzir, portanto estava muito interessado em acompanhar os trabalhos dos
tradutores. Ele era um escritor intuitivo, quase que místico, tinha uma relação
mística com a linguagem, e, ao mesmo tempo, era muito racional, muito analítico.
Ele sabia exatamente o que estava fazendo assim como sabia ou tinha uma ideia daquilo
que deveria ser uma boa tradução de seus textos. Essas ideias estão mais claras
nas correspondências que ele manteve com seus tradutores. Infelizmente, apenas a
correspondência com dois tradutores foi publicada. Uma das publicações, inclusive,
é anterior a sua morte em 1967: a correspondência com o tradutor italiano Edoardo
Bizzari. A correspondência com o tradutor alemão, Curt
Meyer-Clason foi publicada após a morte do escritor. E devo confessar
que não li totalmente esses dois livros, mas já os li em parte e constatei que
ele realmente tinha uma noção muito clara do caráter e das propriedades do seu
estilo: um novo regionalismo, palavras compostas de elementos regionais,
arcaicos ou estrangeiros (ele era muito mineiro, muito brasileiro, mas muito
transnacional e muito translingual também). Guimarães Rosa fez uma espécie de
mestiçagem linguística, extraiu elementos de várias línguas, inclusive do
alemão. Sua grande preocupação era devolver às palavras e aos sintagmas a sua
beleza, sua sugestividade, sua magia, toda riqueza dos seus significados. O que
o aproxima dos românticos, inclusive os românticos alemães, para quem as
palavras e os sintagmas, frases, digamos, não são apenas signos de uma
realidade extralinguistica, mas constituem uma realidade sui generis, aliás, esse é o significado de poesia: poiesis significa geração, no sentido de
gerar, de produzir, de criar. Esta é uma ideia romântica também. Há um pequeno
poema de Eichendorff : “Schläft
ein Lied in Allen Dingen/ die da träumen fort und fort/ und die
Welt hebt an zu singen / Triffst du nur das
Zauberwort”que
é mais ou menos “As coisas vivem sonhando e sonhando e o mundo
começa a cantar se você acertar na palavra mágica” Pois Guimarães Rosa queria
criar um estilo que tivesse a máxima distância da linguagem de todos os dias,
da língua padrão, também da linguagem de outros escritores. Isso foi uma
preocupação que tornou o estilo dele de acesso difícil, também enigmático e
hermético. Ele queria ainda que os tradutores produzissem uma prosa poética tão
distante da linguagem padrão nos seus idiomas, quanto ele o fez no idioma
português. E é preciso dizer que nenhum dos tradutores tentou plenamente. Tentaram
até certo ponto — eu preciso ser modesto e humilde, estou começando como tradutor,
estou começando como crítico literário da obra de Guimarães Rosa e como crítico
e como leitor das outras traduções — mas pelo que eu li até agora das outras
traduções, há poucos neologismos, por exemplo, as palavras que eles usam são
palavras que encontramos em dicionários, em alemão, em italiano, em inglês, em
francês, em holandês. Eu
leio todas essas traduções, não leio palavra por palavra, mas sempre dou uma
olhada, tanto para o holandês, quanto para o italiano, o francês, as duas para o
espanhol e para o inglês também. Os de línguas românicas conseguem seguir com mais facilidade a
sintaxe, a colocação e a sequência das palavras alcançando uma maior
fidelidade, mas o inglês, o alemão e o holandês têm mais dificuldade,
naturalmente. Alguns tentam pelo menos dar uma ideia da sonoridade. Nesse
sentido, as traduções realmente seguem mais ou menos as recomendações estilísticas
do autor. Em geral, os tradutores procuraram sim reconfigurar essas figuras
sonoras, recursos ou figuras estilísticas sonoras, mas não a raridade de
palavras, os novos prefixos, novos sufixos e provérbios que ele inventou, a ressemantização
de palavras — às vezes há uma palavra realmente corriqueira mas usada com o
sentido inusitado — em geral os tradutores hesitam em segui-la. As línguas
românicas, como já disse, têm mais facilidade, é por isso que as traduções para
o espanhol, para o italiano e também para o francês, nesse sentido, são as mais
fiéis. Já para o alemão e para o holandês é muito mais complicado. E, infelizmente,
o tradutor para o alemão se afasta mais do que todos os colegas do ideal
estilístico de Guimarães Rosa.
Por que a tradução alemã de Curt Meyer-Classon se afasta mais do ideal
estilístico de Guimarães Rosa?
Porque quase não
há mais distância entre o estilo dele e aquilo que se esperaria, o que eu
chamaria de qualidade diferencial estilística, que é a qualidade de determinado
estilo em relação ao estilo que o leitor esperaria em tal época, tal gênero
literário e tal temática Essa qualidade diferencial é enorme em Guimarães Rosa, mas
ela é bem menor nas traduções, e é menor ainda na tradução alemã, embora esta
seja ainda bem legível, muito bonita e muito bem sucedida à primeira vista. Contudo,
quando você faz o teste pela Internet — aliás, grande ferramenta que o tradutor
de hoje tem ao seu favor — e digita no Google trechos com quatro ou cinco palavras utilizados
pelo escritor, verifica que enquanto no
original esses trechos apenas são encontrados em sites relacionados ao
Guimarães Rosa, na tradução, aparecem 10 mil, 100 mil, 1 milhão de ocorrências.
Nota-se que não existe mais qualidade de diferencial, logo, algo está errado. O
meu desejo é conseguir que a combinação de palavras traduzidas em Grande
Sertão quando procurada na Internet também não seja
encontrada em nenhum site, a não ser na própria obra de Guimarães Rosa. Isso é
o ideal e não é realizável plenamente, mas como já disse no início de nossa
conversa, quando comentei sobre a inevitável melancolia do tradutor: você sabe
que você não consegue, mas tem que tentar. Eu não vou traduzir, nenhum tradutor
pode traduzir o estilo tão distante do estilo padrão na língua dele ou tão
estranho, com tanto efeito de estranhamento no leitor ou não pode ferir tanto o
horizonte de expectativa ou de espera quanto o fez Guimarães Rosa, mas tenho
que tentar. E deve haver alguma distância sim entre o estilo dele, o estilo do
texto de chegada, e o estilo que o leitor culto esperaria. Mas, por outro lado,
não posso produzir um estilo tão raro porque aí o leitor ficaria talvez aborrecido,
se sentiria rejeitado pelo texto. O texto tem que ter acessibilidade um pouco
mais fácil do que para o leitor brasileiro, porque o leitor brasileiro não se
sente rejeitado, pois continuará a leitura, apesar da dificuldade, por se
tratar de um autor canonizado, de grande prestígio.
Sua afirmação vem ao encontro de uma questão minha: no
posfácio da tradução de Os Sertões de Euclides da Cunha, você
afirma reproduzir na medida do possível a singularidade estilística do original
e ao mesmo tempo tentar tornar o texto consideravelmente mais legível. Gostaria
que comentasse os obstáculos e alternativas que encontrou na tradução de uma
obra hermética e difícil como a de Euclides, tradução, diga-se, laureada pelos
Prêmios Scathed e Wieland.
Eu sou muito
egoísta quando penso que traduzo, em primeiro lugar, para mim mesmo. Ao me
apropriar de um texto, eu o faço para leitores, outros leitores da minha
língua, da língua de chegada. Não confio 100 % em mim mesmo. Em todas as minhas
traduções, tive o hábito de ler trechos para amigos que não soubessem nada do
Brasil — mesmo se soubessem português, não tinham lido o trecho original — para
ver como eles o entenderiam. Porque a compreensibilidade para mim também é uma
meta. Eu tenho que combinar duas metas quase excludentes: dar uma ideia da
singularidade e da dificuldade do estilo original, além da qualidade
diferencial deste estilo e ao mesmo tempo eu tenho que facilitar a compreensão.
E não há uma solução ideal. Durante todo livro, tenho que negociar cada frase,
cada palavra. Umberto Eco, em Quase a
mesma coisa: experiências de tradução, nos fala que a tradução deve ser legível
e compreensível e que o conceito de negociar é muito importante. Eu tenho que
negociar comigo e imaginariamente com o autor, com o texto e com os futuros
leitores. Tenho que chegar a uma solução aceitável para todos: para mim, para o
autor, para o narrador imaginário do texto e para os leitores que não conheço
ainda, mas que posso imaginar. Eu sei mais ou menos que tipo de leitor provavelmente
lerá o livro um dia. Mas não há receita. Acredito muito também na audição o texto.
Em Euclides da Cunha eu dei muita atenção à audibilidade, o livro tem que ser
legível e audível. A minha teoria é de que um texto, mesmo quando lido
silenciosamente, (diferentemente da
Idade Média ou da Antiguidade quando as pessoas liam em voz alta) é
ouvido. Para mim, uma boa audibilidade
do estilo constitui 90% daquilo que é um bom estilo. Um estilo que soa bem é
considerado um bom estilo. Uma pessoa que não sabe identificar os textos como
bons ou ruins, os lê em voz alta e constata qual soa melhor. Para testar a
qualidade do texto, eu o leio em voz alta e às vezes o leio alto para outras
pessoas ouvirem e me dizerem se estão compreendendo ou não. A leitura em voz alta
tem duas funções: avaliar a qualidade sonora, o ritmo e a sequência dos sons e
das sílabas e também testar a compreensibilidade do texto.
Ainda sobre Os
Sertões no artigo Um depoimento brasileiro para a História Universal-
Traduzibilidade e atualidade de Euclides da Cunha, você afirma que além do
público letrado do litoral, o autor tinha em mente o público europeu, da época
e da posteridade, de modo que Os Sertões
é daqueles livros que pedem para ser traduzidos e que para desdobrar todo o seu
riquíssmo potencial de significados precisam de recriação em outros idiomas.
Este também foi um dos motivos que o impeliu a traduzir a obra, ainda sem uma
editora em vista?
Sim, também. Eu
acho que qualquer bom livro pede para ser traduzido, porque, graças a Deus, um
livro escrito para determinada comunidade linguística, para determinada leitura
de determinada cultura, tem um potencial de significados que ultrapassa a
língua, a cultura, a região, o país, a nação e a época na qual e para a qual
foi criado. Isso é quase um milagre, é algo fantástico. Jorge Amado escreve o
livro Capitães de Areia para o
público daquela época, fim dos anos trinta se não me engano, um livro cheio de
compreensão, de compaixão, com os meninos de rua, como se diria hoje, um livro
de poesia, mas, ao mesmo tempo, é um livro de protesto social também, um livro
de crítica e até hoje é best seller no mundo inteiro. Isso é fantástico, um
livro de uma época, de um público e de uma nação, mas implicitamente escrito
para o mundo porque tem camadas de significados que vão muito além do idioma e
da cultura para os quais foi escrito. No caso de Euclides, há um fato curioso,
Euclides chegou à Bahia no início de agosto de 1897 para depois seguir para
Canudos a assistir à Guerra de Canudos como jornalista, como correspondente de
guerra e também como uma espécie de assessor do Ministro de Guerra. Uma situação
bem complicada e quase contraditória: ele era membro do exército e ao mesmo
tempo jornalista, que deveria relatar objetivamente e de maneira crítica esse
exército, uma situação bastante delicada. Mal Euclides chegou à Bahia, conheceu
um intelectual franco-brasileiro, para quem encomendou, pediu que traduzisse seu
futuro livro sobre a Guerra de Canudos. Antes de escrever a primeira linha de Os Sertões, ele já havia cuidado da
questão da sua tradução para o francês! (que era a língua franca da época, como
hoje seria o inglês)
Como
você entrou em contato pela primeira vez com a literatura brasileira?
Eu vim ao Brasil
pela primeira vez em 1968, no meu tempo de estudante. Era um interesse
tríplice, talvez um interesse político. Foi uma época bem dramática no mundo com
movimentos intelectuais e culturais nas universidades. Movimentos de revolta,
de inovação, de utopias, de crítica aos poderes estabelecidos, ao establishment interno, e no plano
internacional também, crítica ao imperialismo, além de um certo engajamento
ético, eu diria, político, uma certa indignação com a miséria do mundo. Vemos
isso pouco ou bastante na obra e na vida de Pierre Bourdieu, o sociólogo
francês, La Misère
du Monde. Protestávamos também contra ditaduras, no Brasil houve o golpe
militar em 1964, no Paraguai antes, nos anos 50, e havia outras ditaduras,
havia ainda a ditadura em Portugal, de Salazar, na Espanha, a ditadura de
Franco, que só morreu em 1975/76. Ou seja, o mundo estava pleno de ditaduras,
principalmente o mundo ibero-americano. Esse foi um dos motivos pela minha
vinda ao Brasil. O outro foi o interesse pela literatura e pelos filmes. Eu
tinha assistido ao Vidas Secas, de
Nelson Pereira dos Santos, estava começando a ler literatura Latino-Americana.
Estudava espanhol. Antes do filme, eu tinha lido também Josué de Castro, Gilberto
Freyre. Já o terceiro motivo envolve fatores mais pessoais, como dizem os
franceses, cherchez la femme. Eu tinha
uma namorada brasileira, que conheci na França. Vim ao Brasil para visitá-la. Como
ela também era do Nordeste, passei a me interessar muito pela região. Dez anos
mais tarde, quando já havia terminado o doutorado, voltei ao Brasil como professor
visitante da Universidade Federal do Ceará. Comecei a ler Os Sertões, em 1978, quando já tinha noções e um certo fascínio
pelo sertão. Aliás, sempre gostei do sertão, desde 1968, quando o atravessei
pela primeira vez, de ônibus e de trem Ainda havia trens naquela época.
Você chegou a conhecer Canudos e, consequentemente,
São José do Rio Pardo? Esse conhecimento geográfico também é importante para a
tradução?
Naquela época
não, mas posteriormente sim. Estivemos juntos em Canudos, Cláudia e eu. Estive
também em São José do Rio Pardo. Sim, o conhecimento
geográfico é importante para a tradução, mas quando leio um livro,
principalmente quando o traduzo, tenho que imaginar como é e como foi o espaço,
digamos, o espaço ficcional, o espaço evocado pelo livro. Como é a relação entre
o espaço imaginado e o espaço real. Porque aí posso organizar melhor a minha
imaginação como leitor. Quando traduzo, uma das primeiras coisas que faço é
comprar mapas, preciso de mapas. Comprei vários mapas do sertão de Canudos para
me organizar, mapas históricos e atuais. Depois busco informações
complementares: história, geografia, botânica. Isso eu faço com todos os livros
que traduzo. Acho que qualquer tradutor faz isso, não é? Até certo ponto, nos
sentimos um segundo autor, temos quase todas as informações que um autor tinha e
reescrevemos o livro. Mas, para poder fazer isso, temos que saber quase tudo
aquilo que o autor sabia. Temos que saber até mais do que o autor. Temos que,
às vezes, corrigi-lo, pois às vezes se engana. E temos ainda que conhecer a
história da recepção do livro. Você citou São José do Rio Pardo, é um lugar que
cultiva a memória de Os Sertões, a
vida de Euclides. É importante saber qual é o papel de Euclides na cultura
brasileira, quais são as principais linhas de interpretação, qual é a fortuna
crítica dele, e isso entra na leitura dos brasileiros e também na minha
leitura. Não que eu exatamente reproduza essa leitura. Mas essa leitura entra
na minha tradução, no paratexto também. Porque penso que o tradutor é autor do
paratexto, que faz parte da tradução, pois leva o livro para outra cultura e o
torna compreensível para leitores que não conhecem muito bem a cultura de
partida. Grande parte daquilo que não posso inserir na própria tradução eu acrescento
no paratexto. Procuro inserir, de alguma maneira, essa cultura nessas obras de
chegada. Escrevi vários textos sobre Os
Sertões na Alemanha., não somente o posfácio. Há textos em que eu comparo a
Guerra de Canudos com as guerras camponesas, por exemplo, que foram guerras religiosas
e guerras sociais. Guerras sociais, mas na roupagem de guerras religiosas, muito
semelhante à guerra de Canudos, que, para os canudenses, era uma guerra
religiosa, do anticristo contra cristo ou do diabo contra deus.
O
seu ofício como tradutor modificou, de alguma forma, seu olhar como
leitor?
Sim, eu fico
mais atento aos detalhes. Antigamente, quando eu lia, tinha uma leitura mais
dedutiva. Tinha tal ou tais interesses cognitivos, que se verificavam no texto.
Exagerando um pouco, procuramos a confirmação daquilo que achávamos que já
sabíamos antes. Como tradutor, pratico uma leitura indutiva, mais aberta, eu
faço de conta que não sei de nada e não penso nada sobre o texto. Deixo o texto
exercer seus efeitos sobre mim e assim o examino. Quando tenho um elemento que
não faz efeito nenhum, tudo bem, eu não quero ignorá-lo. Vou examiná-lo e
entender porque o autor escolheu tal e tal palavra a partir de um arsenal de palavras
mais ou menos sinônimas, ou sintagmas mais ou menos viáveis. Ou seja, eu
procuro entrar na cabeça do autor, o autor quer dizer isso ou aquilo, ele tem
um elemento semântico, poderia ter dito isso assim ou assado. “Tiros que o
senhor ouviu não foram de briga de homem não” é a primeira frase de Grande Sertão. Tiros, por que tiros? Por
que não uns tiros? Por que não os tiros? Por que não aqueles tiros? Por que não
aquele estampido? (há tradutor que traduz este tiro como estampido, ou estalo.
Mas o narrador diz tiro, tiro é de fuzil, ou de pistola, estampido pode ser qualquer
coisa, que não necessariamente de uma arma de fogo). E “que o senhor ouviu”,
ele poderia dizer que você ouviu. Que a vossa senhoria ouviu. Ou escutou. Ou
tem ouvido, tinha ouvido, ou ouvira. “não foi de briga de homem não” por que o
não no final? Poderia ser “não foi de briga de homem”..
Mas
isso torna a leitura mais demorada e também mais prazerosa, não?
Claro. O texto
aparece diante dos meus olhos e ouvidos como resultado de um processo de
decisão a partir de um potencial muito rico. Eu quase vejo o autor hesitar, eu
reescrevo o texto de certa forma. Como aquele crítico francês no conto de
Borges, Pierre Menart, autor del Quijote, que reescreve Dom Quixote de Cervantes, estuda a história do cristianismo, e o
resultado é aparentemente o mesmo. Mas ele entende o texto muito mais
profundamente do que se fizesse uma simples leitura. Porque pensa o que o autor
poderia ter escrito e não escreveu. Eu entendo o texto como resultado de milhares
de processos de decisões entre milhões de possibilidades, no eixo
paradigmático. Como antigamente, quando o tipógrafo tinha os tipos e escolhia
tal e tal tipo a resultarem em um texto. Desta forma, eu entendo a necessidade
de o texto ser tal qual ele é.
Errata: (duas correções)
o nome da editora pela qual Berthold Zilly traduzirá Grande Sertão: Veredas é Hanser e não Hansel.
o título do conto de Borges é Pierre Menard, autor del Quijote e não Pierre Menart, autor del Quijote
o nome da editora pela qual Berthold Zilly traduzirá Grande Sertão: Veredas é Hanser e não Hansel.
o título do conto de Borges é Pierre Menard, autor del Quijote e não Pierre Menart, autor del Quijote