O tí estin de Clarice Lispector
Na tentativa de responder à pergunta “o que é isto — filosofia?”, Heidegger discorreu sobre o próprio questionamento, uma vez que, para ele, não somente a filosofia é grega em sua origem, mas também o modo como se pergunta, mesmo que à sua maneira de questionar, ainda é grego. A pergunta: “que é isto ...?” em grego, “tí estin”, mantém a questão, ao que algo seja, multívoca.
De acordo com o filósofo, a resposta à indagação “que é aquilo lá longe?”, “uma árvore”, consiste na nomeação de uma coisa que não se conhece direito, logo, o tí estin implica, na realidade, a questão: “o que é aquilo que designamos ‘árvore’?”
As indagações na escritura de Clarice Lispector em muito se assemelham ao tí estin. Tomemos como exemplo a crônica escrita para o Jornal do Brasil, cujo próprio título O que é que é? vem a concretizar a pergunta, enquanto questão da essência, que se mantém sempre viva por intermédio da essência que se interroga.
Na crônica, a autora perscruta os sentimentos erigidos a partir de situações que vive, com a interrogação “como se chama o que sinto?”, até concluir que “o único modo de chamar é perguntar: como se chama?” (A DESCOBERTA DO MUNDO, 1999, p.199)
Em outras palavras, a autora não pergunta primeiramente “o que é aquilo lá longe” e sim, aproxima-se de pronto da pergunta “o que é aquilo que designamos...?”, e, por conseguinte, do tí estin. Há o interesse pela coisa que não se conhece direito, pelo “que”, e não pela nomeação.
Como se sabe, Clarice Lispector também foi jornalista, e, durante as décadas de 1960 e 1970 trabalhou como entrevistadora para as revistas Manchete (maio 1968-outubro1969) e Fatos e Fotos / Gente(dezembro1976- outubro1977), produzindo um total de 83 entrevistas (59 entrevistas para a Manchete e 24 para a Fatos e Fotos/Gente).
Interessante observar que, apesar de ter como entrevistados, artistas, políticos, e personalidades da época, como Chico Buarque, Tarcísio Meira e, até mesmo, o Padre Quevedo, Clarice manteve o caráter metafísico em suas perguntas.
No estilo “pingue-pongue”, a entrevista se aproxima de seu entrevistado com indagações como “O que é o amor?”, “Qual a coisa mais importante do mundo?”, “Qual a coisa mais importante do mundo para você como indivíduo?”, as quais o induz a “olhar para dentro”, a aprofundar-se no próprio ser, exigindo um maior contato consigo mesmo.
Desta forma, por meio da fantasia de carnaval, por exemplo, Clarice Lispector extrai de seu entrevistado, Clóvis Bornay, considerações a respeito da personalidade humana, subentendidas na explanação sobre a necessidade daquele que interpreta modelos carnavalescos em ser “bom ator”, capaz de possuir “a inteligência de um gênio, a força de Hércules, a bondade de Cristo, as alegrias de uma criança, a ternura de uma mulher e as artimanhas de um demônio”. (LISPECTOR, C. Diálogos Possíveis com Clarice Lispector. Revista Manchete, Rio de Janeiro, ano16, n. 879, p.48-49, 22 fev. 1969).
Ou ainda, ao entrevistar “o primeiro figurino do país”, Tereza Souza Campos, pelo simples fato de “não simpatizar com ela”, Clarice revela em sua entrevistada uma mulher, que, muito além de ser a mais elegante, também é “inteligente”, que, com os “olhos virados para dentro”, reflete sobre o que é, capaz de despertar a simpatia de alguém que, mesmo sem lhe ter empatia, em um primeiro momento, chama-a de “une femme d’esprit” (LISPECTOR, C. Diálogos Possíveis com Clarice Lispector. Revista Manchete, Rio de Janeiro, ano16, n. 869, p.40-41, 14 dez. 1968).
Para Clarice entrevistadora, as entrevistas correspondem uma forma de compreensão da Vida, uma vez que é clara sua preocupação com o entrevistado não enquanto celebridade, porém, enquanto ser humano, misterioso para consigo mesmo.
É possível que, também nas entrevistas, Clarice Lispector não estava atrás de respostas, mas da pergunta em essência, do ti estin, cuja chama se mantém viva porque se interroga.
4 comentários:
Morro de medo da Clarice.
Rarárá. Também tenho!
Viver entre nomes, ser nome, conhecer apenas nomes... seria essa a essência do isolamento a que estamos condenados, nós, humanos, que nunca tocamos a profundidade dos seres, das coisas, do mundo, além da superfície de seus nomes?
Adorei a tese. Parabéns e beijos!
Andrea, querida, sempre penso nisso. Aliás, estudo isso na Semiótica, o que de modo algum me conforta! Muito obrigada
PS: seu artigo está ótimo!
Postar um comentário