No apartamento, avistou a sombra larga da mãe sobre os papéis jogados a
sua frente, na mesa improvisada do centro da sala. Esqueceu-se por um momento
do aniversário.
— Eu sou desse tamanho aqui — apontava pro boneco de porcelana.
— Vai brincar, meu bem, a mamãe tá trabalhando. — Sim, trabalhava naquele
domingo sua mãe, envolta por papéis e letras miúdas.
Restava o irmão Mauro, o olhar
adulto e a voz destoante. Alma preparou qualquer brincadeira pré-requentada.
Mas o irmão já se disfarçava na espera da adolescência.
— Alma, não! Que droga.
— Então vai se foder — desafiou.
Queria ser adulto, né. Que seja. Correu pra janela e começou a cuspir.
Divertiu-se com a possibilidade de sua saliva tocar a cabeça de alguém ou de
algum. Distraída com seus cuspes, a
pequena não percebeu o toque agudo da campainha. Mauro abriu a porta. Ante seu
corpo se formou a sombra de um homem alto. A irmã conteve-se na janela,
encurvada sobre seus cuspes. Mas eis que surge na sua frente um pouco de Alma
na voz daquele homem:
— Não vai me dar um beijo, menina? — o homem alto se dobrou ao tamanho da
menina. — Trouxe um presente pra você. Abra.
Alma se quedou estática, sem olhar pro homem ou pro presente. Sua mãe
arriscou algum movimento:
— Alma, minha filha, que modos.
O homem se desculpou à mãe enquanto tentava animar a filha chacoalhando o
presente. Mas a menina apenas conseguia se lembrar de quando o irmão havia lhe
garantido que o pai que nunca viram iria visitá-los no aniversário dela. Tapou
os ouvidos e cuspiu nos sapatos engraxados daquele homem. A mãe se indignou de
pronto com o cuspe da filha:
— Alma! — olhou pro homem alto — perdão. parece bicho do mato essa aqui
—voltou-se pra pequena com sua melhor bronca — Tá de castigo, já pro quarto.
Antes dá tchau direito pra este homem educado que ainda traz um presente pra
você.
— Eu te odeio — foi o que saiu
da boca da menina, um ódio sem direção, sem alvo, lento e denso como seus
cuspes.
*
Possível leitor, o ar está um pouco seco. Respiro a fumaça do caminhão,
logo à frente. Respiro esta tarde poluída. Carlos dirige, não sente nada. Que quando em quando me vem este perfume
suave e esta sensação doce. Então me
esforço, mas não consigo me lembrar da alegria. Um pouco pesado, sei, como o
monóxido de carbono. Carlos sorri, acredita que gosto dele. Eu penso em outros
e sorrimos os dois. Carlos e suas mãos grandes. Combinamos, cada qual com suas
mãos. E minha mão esquerda, a adúltera. Voltemos, mão esquerda, ao nosso
segredo. Fique leitor, não se sinta invasor, dividiremos pois segredos com
você. Aliás, ia me esquecendo. Você também é leitora e eu, um segredo unisex.
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