Que sussurre a primeira palavra
quem nunca mentiu ao brincar de telefone sem fio
quem nunca mentiu ao brincar de telefone sem fio
por Ana Rüsche
Você já soube a tua própria verdade na língua? Até que a saiba tanto e a transforme em mentira? Até que se transmude em sonho, se consuma no cigarro durante o papo com um amor daquela noite, se retorça em uma anotação à toa na folha enquanto participa de uma reunião no trabalho, até que cintile num cisco, num incômodo? Você já soube a tua verdade até não a reconhecer como própria? Quando se apresenta como uma estranha e se senta no sofá da sala com uma familiaridade espantosa?
Telefone sem fio não ajuda a responder nenhuma dessas perguntas. Bem mais atiça quem lê para que outras sejam feitas. Síndrome de sobrevivência para que se lide com aquela porção horrorizada e desconfortável de nós mesmos. Que, ao escutar a canção querida de Joni Mitchell, já não reconhece mais um beijo roubado adolescente e apenas enxerga a dúvida, numa porção inacabada do próprio rosto refletido no retrovisor do carro que não dirige. No quê nos transformamos todos os dias?
É a história de Alma. Alma Pontes. Da tenra infância à idade adulta. Do telefone cinza ao aparelho celular. Inicia-se com a pequena menina estrábica, que aprende a mentir na brincadeira de telefone sem fio e que revida da vida ao cuspir nos sapatos engraxados de um homem estranho que se intitula 'pai'. Desenrola-se com a garota que possui relacionamentos com uma semelhança suspeita, sempre em paralelo, aos relacionamentos de seu irmão Mauro. Até chegarmos à narradora do início com o rosto refletido em um retrovisor, buscando sentidos no oráculo pagão que é a internet.
Uma tentativa de explicação ao que é tão difícil de explicar, tendo como pano de fundo os principais acontecimentos brasileiros dos anos 90 a 2000. Que passa pelo plebiscito sobre a monarquia; pela moda de dançar lambada, enquanto muitos tinham as economias ceifadas pelo Plano Collor; pela morte de PC Farias; pelo pedido de impeachment de Celso Pitta; pelo racionamento de energia durante o governo de FHC; pela eleição do Lula; pelo advento da internet. A narrativa traz muito sobre o modo de viver da classe média na cidade de São Paulo: a formação escolar, os apartamentos, as festinhas, as aulas de inglês, a faculdade, os empregos de vendedora no shopping, de jornalista, de professora de história, os freelas, as incertezas do quê pensar, com quem dormir, onde morar.
Em uma prosa ligeira e deliciosa de ler, cheia de sutilezas e graças, Vera Saad Rossi coloca-nos no beco em que sempre estamos: como narrar nossas próprias verdades? As mais difíceis de serem assumidas? Em meio a dificuldades familiares, dissabores amorosos, perrengues financeiros diários?
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