"Querida, você tem um coração na garganta"
Minha avó

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Contão com título e melhor do que original!

A Débora terminou o conto. Ficou melhor do que se eu continuasse. Não perdeu o tom, ao mesmo tempo em que acrescentou um "tempero" todo dela. Adorei a brincadeira! Ah, o título é dela também.


Felicidade fora de contexto

Estava me sentindo bem naquela manhã. Uma espécie de alegria sincrônica, um rombo no peito simultâneo ao que me dessem como garantia de vida. Certa música que ouvisse antes de ligar o rádio, de fato. Uma frase dita antes que alguém pensasse em abrir a boca. Uma ligação importante concomitante (odeio esta palavra!) ao meu desejo de ser importante. “Não pode ser tão perfeito!”, pensei. Não estava acostumada a qualquer felicidade isenta de esforço. Sempre desconfio da alegria espontânea.

Tranquei meu quarto, já inclinada à bondade. Aproveitei meu café da manhã com a boca mais doce, receptiva, distraída ante uma felicidade por se roubar. Mastiguei macio o pão amanhecido, mergulhado no café frio. Rumo à loja onde trabalho, larguei-me no confortável movimento de minhas pernas. Que sensação, por Deus!

Os rostos cansados bocejavam duvidosos, qualquer esboço de felicidade era incompatível com um metrô abarrotado de desilusão. Encaravam-me solitários e céticos. Estiquei meu sorriso, como uma afronta. Sabia que não iria durar, pois mantenho um constante vinco preocupado entre as sobrancelhas, a fazer do sorriso um movimento antinatural dos lábios. Mas desafiei minha natureza, naquela manhã, e permaneci sorridente.

Afinal, a alegria surgiu, não pedi por ela. Tinha mais era que aproveitar aquele estado quase eufórico. Ainda que receosa. Sabia que a qualquer fração de segundo ela poderia me escapar. Mantive o sorriso. Como se fosse possível reter sentimento travesso dentro da gente. Como quem vê repetidas vezes um final feliz de filme na esperança de sentir a mesma felicidade que sentiu da primeira vez. Momentos assim não se guardam num vidrinho.

Segui em frente. Senti uma compaixão por cada cliente que entrava na loja. Vontade imensa de dar um abraço até mesmo na mais infeliz das criaturas. Meu sorriso estampado no rosto nem precisava mais de esforço. Que tipo de sentimento é esse que desafia até o vinco preocupado na testa? Um problema, um bate-boca, uma discussão. Clientes em tempos de Natal são sempre estressados. Nada abalava minha euforia silenciosa. Dessas de sorriso de canto de lábio.

Como se fosse eu um anjo incumbido de passar ternura aos homens. Que besteira. Justo eu, que nunca dei crédito aos anjos, aos santos, às cartas, aos búzios e a tudo o que promete felicidade instantânea. A noite caiu. Hora de voltar para casa. Achei que aquele sentimento inebriante me deixaria ao meio dia. Não. Ele me perseguiu ao longo das horas. Na volta para casa. Na rua escura, feiosa e cheirando a urina onde vivo. Me perseguiu na minha janta solitária, feita de sobras e misturas improváveis. Ainda na hora da novela, sorriso insistente.

Fui dormir sem entender como é possível a felicidade fora de contexto. E me acreditando pouco merecedora disso. O dia seguinte seria a continuação de ontem. Hoje simplesmente não existiu.

2 comentários:

3 x Trinta - Solteira, Casada, Divorciada disse...

Oi Vera, oi Debs,

Muy buena a dobradinha! Gostei disso. Inspirador o texto.

Beijos,

A Divorciada do 3xtrinta

Vera Helena disse...

Obrigada, Divorciada. Quero mandar o conto pro Cronópios, a ver se eles publicam lá.

Beijos,